Capítulo VIII

Como repreendeu seu vigário por ter mandado construir ali uma pequena casa para rezar o oficio.

 

1 Em outra ocasião, o vigário de São Francisco mandou começar a construir, no mesmo lugar, uma pequena casa, onde os frades pudessem repousar e rezar suas horas; 2 porque, devido à multidão de frades que vinham àquele lugar, os frades não ti­nham onde pudessem rezar o oficio. 3 Pois todos os frades da Ordem acorriam ali e ninguém era recebido à Ordem senão ali.

4 Quando a casa estava quase pronta, o bem-aventurado Francisco voltou àquele lugar e, estando na cela, ouviu o ruído dos que ali traba­lhavam; chamando seu companheiro, perguntou-lhe o que esta­vam fazendo aqueles frades. Ele contou como era tudo.

5 Mandou chamar seu vigário na mesma hora  e lhe disse: “Ir­mão, este lugar é modelo e exemplo para toda a religião; por isso, prefiro que os frades deste lugar suportem as privações e os incômodos por amor a Deus, 6 e os outros frades que vêm aqui levem o bom exemplo da pobreza para seus luga­res. Pois, se os que moram aqui satisfazem plenamente suas co­modidades, também os outros seguirão o exemplo de construir em seus lugares, 7 dizendo: Em Santa Maria da Porciúncula, que é o primeiro lugar da Ordem, constroem-se tais e tantos edifícios; também nós podemos construí-los em nossos lugares”.

 

Reflexão

 

Neste capítulo observamos que o autor do espelho da perfeição, mais uma vez, trata do tema da posse de imóveis. Neste momento, certamente, o debate sobre a construção, compra ou recebimento de bens materiais como doação devia estar tomando conta das fraternidades da Ordem dos Frades Menores. Segundo Francisco, buscar a comodidade traria problemas para a vivência do que ele pensa do ideal dos frades.

E o que o texto tem de informações importantes para nós franciscanos seculares? Talvez a informação mais relevante seja a luta de Francisco contra a incoerência. Como exigir dos Irmãos uma vida simples, humilde e pobre se como instituição construímos palácios, catedrais e uma grande quantidade de edifícios?

A palavra coerência tem como origem a termo latino "cohaerentĭa", e trata da coesão ou relação entre uma coisa e outra. Na vivência da fé cristã a palavra deve estar sempre relacionada à prática. É isso que temos que almejar. 

Segundo Thomas Morus, “Sê o que quiseres, mas procura sê-lo totalmente”. Nossas fraternidades não podem estudar e meditar sobre  a pobreza e não vivê-la na prática. Como os novos irmãos e irmãs se sentiriam se isso acontecesse? Segundo Francisco, a incoerência não proporciona seguidores. A prática não pode se afastar da teoria, ou seja, da formação.

Pode ser que a coerência esteja também na necessidade da demonstração das fragilidades que todos nós seres humanos possuímos. Temos que mostrar que estamos a caminho. não estamos prontos. Como fraternidade, seja no nível que for, nossa obrigação é colocar um aviso de que estamos em construção . Desta forma, nossos simpatizantes e iniciantes terão a certeza de que como fraternidade cristã também somos passíveis de erros. Não devemos fazer propaganda enganosa.

Outro autor que trata do tema é Santo Inácio de Antioquia. Segundo ele, “É melhor calar-se e ser do que falar e não ser. É maravilhoso ensinar, quando se faz o que se diz”. Falar sem coerência é cometer verborragia. Os que virão ao nosso encontro nos acharão vazios. 

Outra coisa importante é a noção de como o Testamento confirma esta ideia de que os irmãos são fundamentais para balizar nossa caminhada fraterna. Assim diz Francisco:

"E depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho".

Será que temos observado nossas incoerências? Que som tem ecoado de nossos encontros e atividades da fraternidade? Será que não somos incoerentes? Temos que escutar o sentimento dos irmãos, inclusive dos que chegam. Abrir espaço para falarem o que tem passado. Muitas vezes achamos que o cronograma, a formação e os momentos que preparamos para nossos encontros são mais importantes que o ouvir ao outro. Será que isso é coerente?

Volto a uma temática anterior. A precariedade e o sentimento de peregrinação constante é o que marca nosso carisma. Temos que ser desapegados. Não podemos buscar a segurança total como fraternidades. Se não for assim, nosso discurso, ou seja, a base de tudo que estudamos em nossas formações, será vazio. 

Fraternidades pomposas que falam de um Santo pobre. Irmãos orgulhosos que tratam de humildade. Proprietários de prédios maravilhosos onde nos trancamos e falamos de um irmão necessitado imaginário. Nossas ações devem ser guiadas pelo Evangelho. Outro questionamento importante, a partir deste trecho seria: O que Frei Francisco nos falaria? Será que falaria conosco da mesma forma que aos frades da Porciúncula?

 

Para meditar:

 

Somos uma fraternidade de espiritualidade francisclariana ou um clube de amigos que se encontram somente para rezar e não temos práticas coerentes?

O que nossa fraternidade precisa observar para viver sua espiritualidade de forma coerente?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

 

Publicado em Notícias

Capítulo VIII

Como repreendeu seu vigário por ter mandado construir ali uma pequena casa para rezar o oficio.

 

1 Em outra ocasião, o vigário de São Francisco mandou começar a construir, no mesmo lugar, uma pequena casa, onde os frades pudessem repousar e rezar suas horas; 2 porque, devido à multidão de frades que vinham àquele lugar, os frades não ti­nham onde pudessem rezar o oficio. 3 Pois todos os frades da Ordem acorriam ali e ninguém era recebido à Ordem senão ali.

4 Quando a casa estava quase pronta, o bem-aventurado Francisco voltou àquele lugar e, estando na cela, ouviu o ruído dos que ali traba­lhavam; chamando seu companheiro, perguntou-lhe o que esta­vam fazendo aqueles frades. Ele contou como era tudo.

5 Mandou chamar seu vigário na mesma hora  e lhe disse: “Ir­mão, este lugar é modelo e exemplo para toda a religião; por isso, prefiro que os frades deste lugar suportem as privações e os incômodos por amor a Deus, 6 e os outros frades que vêm aqui levem o bom exemplo da pobreza para seus luga­res. Pois, se os que moram aqui satisfazem plenamente suas co­modidades, também os outros seguirão o exemplo de construir em seus lugares, 7 dizendo: Em Santa Maria da Porciúncula, que é o primeiro lugar da Ordem, constroem-se tais e tantos edifícios; também nós podemos construí-los em nossos lugares”.

 

Reflexão

 

Neste capítulo observamos que o autor do espelho da perfeição, mais uma vez, trata do tema da posse de imóveis. Neste momento, certamente, o debate sobre a construção, compra ou recebimento de bens materiais como doação devia estar tomando conta das fraternidades da Ordem dos Frades Menores. Segundo Francisco, buscar a comodidade traria problemas para a vivência do que ele pensa do ideal dos frades.

E o que o texto tem de informações importantes para nós franciscanos seculares? Talvez a informação mais relevante seja a luta de Francisco contra a incoerência. Como exigir dos Irmãos uma vida simples, humilde e pobre se como instituição construímos palácios, catedrais e uma grande quantidade de edifícios?

A palavra coerência tem como origem a termo latino "cohaerentĭa", e trata da coesão ou relação entre uma coisa e outra. Na vivência da fé cristã a palavra deve estar sempre relacionada à prática. É isso que temos que almejar. 

Segundo Thomas Morus, “Sê o que quiseres, mas procura sê-lo totalmente”. Nossas fraternidades não podem estudar e meditar sobre  a pobreza e não vivê-la na prática. Como os novos irmãos e irmãs se sentiriam se isso acontecesse? Segundo Francisco, a incoerência não proporciona seguidores. A prática não pode se afastar da teoria, ou seja, da formação.

Pode ser que a coerência esteja também na necessidade da demonstração das fragilidades que todos nós seres humanos possuímos. Temos que mostrar que estamos a caminho. não estamos prontos. Como fraternidade, seja no nível que for, nossa obrigação é colocar um aviso de que estamos em construção . Desta forma, nossos simpatizantes e iniciantes terão a certeza de que como fraternidade cristã também somos passíveis de erros. Não devemos fazer propaganda enganosa.

Outro autor que trata do tema é Santo Inácio de Antioquia. Segundo ele, “É melhor calar-se e ser do que falar e não ser. É maravilhoso ensinar, quando se faz o que se diz”. Falar sem coerência é cometer verborragia. Os que virão ao nosso encontro nos acharão vazios. 

Outra coisa importante é a noção de como o Testamento confirma esta ideia de que os irmãos são fundamentais para balizar nossa caminhada fraterna. Assim diz Francisco:

"E depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho".

Será que temos observado nossas incoerências? Que som tem ecoado de nossos encontros e atividades da fraternidade? Será que não somos incoerentes? Temos que escutar o sentimento dos irmãos, inclusive dos que chegam. Abrir espaço para falarem o que tem passado. Muitas vezes achamos que o cronograma, a formação e os momentos que preparamos para nossos encontros são mais importantes que o ouvir ao outro. Será que isso é coerente?

Volto a uma temática anterior. A precariedade e o sentimento de peregrinação constante é o que marca nosso carisma. Temos que ser desapegados. Não podemos buscar a segurança total como fraternidades. Se não for assim, nosso discurso, ou seja, a base de tudo que estudamos em nossas formações, será vazio. 

Fraternidades pomposas que falam de um Santo pobre. Irmãos orgulhosos que tratam de humildade. Proprietários de prédios maravilhosos onde nos trancamos e falamos de um irmão necessitado imaginário. Nossas ações devem ser guiadas pelo Evangelho. Outro questionamento importante, a partir deste trecho seria: O que Frei Francisco nos falaria? Será que falaria conosco da mesma forma que aos frades da Porciúncula?

 

Para meditar:

 

Somos uma fraternidade de espiritualidade francisclariana ou um clube de amigos que se encontram somente para rezar e não temos práticas coerentes?

O que nossa fraternidade precisa observar para viver sua espiritualidade de forma coerente?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)


Capítulo VII

 

Como quis demolir uma casa que o povo de Assis construíra em Santa Maria da Porciúncula.

 

1 Aproximando-se o tempo do Capítulo geral, que se realizava todos os anos em Santa Maria da Porciúncula, vendo que os frades se multiplicavam a cada dia e que anualmente todos se reuniam ali — e não tinham senão uma pequena cabana, coberta de palhas, cujas paredes eram de ramos e barro — 2 o povo de Assis reuniu seu conselho e, em poucos dias, com muita pressa e devoção, levantaram ali uma grande casa, construída de pedra e cal, sem o consenso de São Francisco e na sua ausência.
3 (...) Temendo que, a pretexto daquela casa, os outros frades também mandassem edificar grandes habitações nos lugares onde moravam ou haveriam de morar 4 e porque desejava que aquele lugar sempre fosse o modelo e o exemplo para todos os outros lugares da Ordem, antes de terminar o capítulo, subiu ao telhado (cf. Lc 5,19) (...) 5 e, junto com os frades, começou a lançar para a terra as telhas que cobriam a casa, querendo destruí-la até os fundamentos.

6 Mas alguns soldados de Assis, que estavam ali para guardar o local por causa da multidão de forasteiros que se reuniram para ver o Capítulo dos frades, 7 vendo que, com os demais frades, o bem-aventurado Francisco queria demolir a casa, imediatamente foram até ele e disseram-lhe: “Irmão, esta casa pertence à comuna de Assis, e nós estamos aqui em nome dela. Por isso, proibimos-te de destruir a nossa casa”. 8 Ouvindo isso, São Francisco disse-lhes: “Então, se a casa é vossa, não quero tocá-la”. E imediatamente ele e os outros frades desceram dela.
9 Por isso, o povo da cidade de Assis resolveu que, para o futuro, quem fosse o podestà da cidade, teria a obrigação de mandar repará-la. E essa norma foi observada todos os anos, por muito tempo.

 

Reflexão

 

Neste trecho do Espelho da Perfeição vemos surgir novamente o tema da posse de habitações e lugares. Desta forma, podemos constatar que essa discussão deveria trazer grandes problemas aos frades, principalmente após a morte de Francisco. Já tratamos de forma profunda esta questão e devemos sempre tratá-la. Nossas fraternidades seculares devem estar atentas quanto a posse de bens imóveis. Pelo menos dois questionamentos devem estar sempre em nossa consciência: Qual é o objetivo de tê-los e qual será o seu uso?

Se não questionarmos é melhor nem possuir nada. Francisco demonstra medo de mudar o status da Porciúncula, que deveria ser o modelo para as moradias e lugares dos frades. Como dito anteriormente, a precariedade era fundamental para a vivência dos irmãos.

Vamos então nos deter em algo diferente que surge neste texto. O relacionamento da fraternitas e o entorno, ou seja, com a cidade de Assis. Qual seria o motivo dos cidadãos e autoridades se preocuparem com o bem-estar dos frades locais e daqueles que vinham para os capítulos? Já pensaram nisso?

Muitos vão dizer acertadamente – eles eram famosos e faziam bem a cidade. E direi a vocês que isso é uma chave muito especial para nossas fraternidades. Isso lança uma pergunta: como estamos nos relacionando com nosso entorno? Será que estamos suscitando a preocupação de alguém de fora com nossa situação, ou seja, com nossas necessidades?

Observemos esse trecho: “O povo de Assis reuniu seu conselho”. A força da fraternidade, mesmo que com um viver simples, despertou o desejo de ajuda dos cidadãos. Fez o povo se mobilizar. Fez com que quisessem abraçar aos irmãos. O amor que eles demonstravam pelos assisenses os levou à reciprocidade. Que amor temos demonstrado pelas comunidades que estão a nossa volta? Temos partilhado suas dores e felicidade?

Uma das características mais profundas do franciscanismo das origens e do movimento penitencial, ao qual estamos inseridos, é a proclamação do Evangelho através da fraternidade e de gestos fraternos concretos. Se nos trancamos e nos fechamos em nossas orações e devoções individuais não estamos abraçando o carisma que professamos ou não o entendemos.

Talvez sejam necessárias atitudes como a proposta por nossa Regra no seu item 15, que nos impulsiona a sermos testemunho com a nossa própria vida, promovendo a justiça, responsável por um renascer desta relação. Ou como no item 14, que nos direciona a nos juntarmos aos homens de boa vontade na construção de um mundo fraterno. Talvez seja isso que nos trará a confiança daqueles que presenciarem nosso testemunho.

Sobre essa necessidade de lermos os fatos que aconteceram com nosso fundador, de um modo especial também tratam nossas Constituições Gerais em seu Artigo 18:

  1. Os franciscanos seculares são chamados a oferecer uma contribuição própria, inspirada na pessoa e na mensagem de Francisco de Assis, para uma civilização em que a dignidade da pessoa humana, a corresponsabilidade e o amor sejam realidade vivas

Por fim, devemos fazer poucas coisas, mas fazer o que é significativo. Irmos a orações, novenas, encontros de formação e outros é fundamental para a nossa vida fraterna. Porém, nosso carisma se dá no encontro com o outro. Se não estivermos em sintonia, pelo menos com aqueles que estão em nosso raio de ação, alguma coisa não está funcionando. Pensemos nisto!

 

Para meditar:

 

O que este Capítulo do EP tem a te dizer como Franciscano Secular?

Será que sua fraternidade tem um contato tão próximo com o seu entorno como Francisco e seus irmãos?

O que estamos fazendo para nos relacionar com a sociedade e encantá-la com o nosso ideal?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

Capítulo VI

 

Como obrigou todos os frades a sair de uma casa que diziam ser casa dos frades

Ao passar por Bolonha, soube que recentemente fora ali construída uma casa dos frades. Logo que ouviu dizer que aquela casa pertencia aos frades, voltou atrás, saiu da cidade e ordenou energicamente que todos os frades saíssem rapidamente e de maneira alguma ali morassem. 2 Então, todos saíram, de forma que nem os doentes ficaram lá mas foram postos para fora com os outros; até que o senhor Hugolino, bispo de Óstia e legado na Lombardia, afirmou publicamente que aquela casa era dele. 3 E um frade enfermo, que foi expulso daquela casa, deu testemunho destas coisas e as escreveu (cf. Jo 21,24).

 

Reflexão

 

Observamos aqui, novamente, a atitude de recusa a posse de instalações. Uma pena que o prédio não é descrito para entendermos o que realmente deixou o fundador dos Menores tão transtornado. André Vauchez, em sua obra “Francisco de Assis, História e Memória”, nos relata que com o ingresso cada vez maior de irmãos, a Ordem sentiu também a introdução de novos hábitos e um estilo de vida menos espontâneo. Isso se dava principalmente devido a diferentes razões que trouxeram estes novos contingentes às fileiras da instituição. Os primeiros frades foram seduzidos pela possibilidade de adoção do projeto de vida evangélica e de pobreza absoluta de Francisco.

Os novos irmãos buscavam principalmente, a partir do que resplandecia como resultado da vivência dos primeiros, a salvação. Vemos aqui, ainda seguindo o pensamento do autor francês, que isso era totalmente diferente ao que o Pobre de Assis pensava, pois ele não tinha a menor preocupação em salvar-se, pois tal fato seria um dom gratuito de Deus.

Já tratamos desse tema nas reflexões anteriores. Mas, uma coisa que nos chama a atenção é a firmeza com que Francisco defendia o que acreditava. Apesar de não querer exercer sua posição com autoridade, era ciente de sua obrigação de zelar pelo que o havia proposto o Senhor. Então, em um arroubo, expulsou a todos do imóvel.

Francisco não era piegas. Não era uma pessoa sem posicionamento, que, em nome de manter os irmãos, afrouxava o que era primordial. Ou seja, apesar de misericordioso e, por vezes, entender as fraquezas humanas, sabia usar a energia correta para corrigir o rumo.

Este acontecimento nos ensina muito sobre o zelo que devemos cultivar sobre nossas fraternidades, principalmente a partir do cumprimento de nossas regras e constituições. Nossas constituições tratam dessa preocupação no item 2 do artigo 31:

O cargo de Ministro ou de Conselheiro é um serviço fraterno, um compromisso de se tornar disponível e responsável para cada irmão e para a Fraternidade, a fim de que cada um se realize na própria vocação e cada Fraternidade seja uma verdadeira comunidade eclesial franciscana, ativamente presente na Igreja e na sociedade.

E também no número 4:

Cuidem os responsáveis da preparação e da animação espiritual e técnica das reuniões, tanto das Fraternidades como dos Conselhos. Procurem difundir ânimo e vida na Fraternidade com o próprio testemunho, sugerindo os meios idôneos apara o desenvolvimento da vida de Fraternidade e das atividades apostólicas, à luz das opções fundamentais franciscanas. Cuidem que as decisões tomadas sejam cumpridas e promovam a colaboração dos irmãos.

A responsabilidade pelo cuidado e cumprimento do que é o cerne de nosso carisma franciscano secular está definida em nossos documentos. Não deve haver “não me toques”. Os posicionamentos devem ser claros. Francisco assim o fez. Ao tomar atitudes que poderiam nos soar como estranhas ele marca sua posição. Os responsáveis pelas nossas fraternidades não podem e não devem calar-se diante de novidades que não coadunam com nosso caminhar.

Nossos encontros e atividades devem ser fraternos e sempre tendo como direção nossa Regra e os exemplos dos Fundadores. Como Penitentes devemos entender nossa História para não cometer mais erros e para buscar luzes para continuar a caminhada. E isso não se fará com afrouxamentos no modo de viver.

Não tratamos aqui de legalismos. Tratamos aqui de privilegiar os elementos que são norteadores do que temos que viver. Não ter posse de imóvel era fundamental na visão de Francisco. É lógico que ao lermos seu Testamento vemos que ele tratou este tema de outra maneira, demonstrando que amadureceu seus pensamentos. Mas, o que devemos entender é que um caminho espiritual não se faz só com sentimentos jocosos. Devemos viver a penitência nos alegrando com a vida fraterna e nos resignando diante das privações que nos levarão a sermos melhores irmãos uns dos outros.

Por último, vemos também a importância de termos uma instância, principalmente ligada à Igreja, para nos auxiliar nestes momentos de tomada de decisão ou de correção de rumos. A participação de um “assistente espiritual” como foi Hugolino de Óstia trazia esta institucionalidade, que proporcionava um equilíbrio nas relações e nas decisões.

Nossas fraternidades precisam dessa ligação com a Igreja. Ela nos possibilita um melhor diálogo e, por vezes, soluções que nos possibilitarão resolver impasses e melhorar nossa caminhada. Fazemos parte da Igreja. Como tal, temos que nos comunicar com os outros membros. Francisco entendeu que não tinha mais forças para tocar o projeto. Sendo assim, buscou ajuda. Por vezes nossas fraternidades estão precisando de ajuda e nós não a aceitamos. Não queremos escutar a voz da Igreja nos mostrando que algumas coisas precisam ser mudadas. Francisco aceitava novas possibilidades. E nós?

 

Para meditar:

 

Estamos dispostos a tomar atitudes marcantes, mesmo que em um primeiro momento possam ser incompreendidas, em caso de servirmos à fraternidade como conselheiro ou Ministro, para manutenção do caminhar da fraternidade?

 

Ao recebermos novos irmãos, como faremos para adequar seus pensamentos ao que está previsto em nossa regra, sem que isso traga problemas de relacionamento ou cause rachas na fraternidade?

 

Você consegue entender a importância do(a) assistente espiritual (lembrando que nem sempre será um religioso de congregação masculina)? Sua fraternidade entende esse papel? Como é o relacionamento de vocês com ele(a)?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

CAPÍTULO V

 

Da observância da pobreza nos livros, leitos, edifícios e utensílios

1 O Santo Pai ensinava os frades a procurar nos livros, não o valor material, mas o testemunho do Senhor; não a beleza, mas o proveito espiritual. Queria que tivessem somente alguns em comum, e sempre à disposição dos frades que deles necessitassem. 2 Nos leitos e roupas reinava uma tal pobreza, que farrapos miseráveis estendidos sobre a palha passavam por bons colchões. 3 Ensinava também seus frades a construir casas pequenas e muito pobres, choupanas de madeira e não de pedra, de aspecto muito humilde. Detestava não só o luxo das casas como também os utensílios muito numerosos e requintados. 4 Não queria nada nas mesas e na baixela que lhe recordasse o mundo, mas que tudo proclamasse a pobreza e cantasse a condição de peregrinos e de exilados.

 

REFLEXÃO

Este capítulo traça um retrato mais amplo do que o fundador desejava para a vida daqueles que seguissem seu carisma. E nesse, nós irmãos franciscanos seculares, temos ensinamentos profundos para nossa vivência franciscana. São quatro itens que entram em discussão: livros, leitos, edifícios e utensílios. Tratam de como deve ser nossa precariedade.

Quando trata dos livros o texto não os negligencia. Eles são importantes, pois suas palavras nos revelam o que o Senhor fez e o que devemos fazer, a partir de Seu exemplo. Este tema também aparece nas Admoestações, conjunto de orientações espirituais recolhidas pelos primeiros frades. Nela está expressa assim a forma como devem ser vistos os textos sagrados:

 

(...)E são mortos pela letra os religiosos que não querem seguir o espírito da letra divina mas só desejam saber mais as palavras e interpretá-las para os outros.(…) E vivificados pelo espírito da letra divina são aqueles que não atribuem ao corpo toda letra que sabem e desejam saber mas por palavra e exemplo devolvem-nas ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo bem.(Ad. 7,3-4)

 

Desta forma, as Escrituras e o conhecimento adquiridos nos livros devem ser usadas para espalhar o exemplo de Cristo na Terra. Voltamos a ideia de que o viver é mais profundo que o saber. Sabedoria sem vivência de nada adianta. Isso é muito importante para nossa vida fraterna. Não podemos usar nossos dons de maneira a nos vangloriarmos por eles.

Quanto aos leitos e prédios suas orientações são bem conhecidas. Como cita São Boaventura na Legenda Maior, o Irmão Menor chegou a derrubar algumas casas e deixou claro que não deveriam ser moradias grandes como as dos ricos. Na verdade, os irmãos deveriam construir casas pequenas e pobres. Essas posses deveriam ser vistas como temporárias, pois os frades e penitentes devem agir como peregrinos e forasteiros, da forma como ele expôs no seu Testamento. O desapego é fundamental! Não é um mero detalhe!

Certamente, muitos de nós vamos achar que isso é um exagero. Em uma sociedade de consumo, como a que vivemos hoje, isso vai soar como algo radical. Será que é isso? Se pararmos para ler sobre a sociedade em que viveu Francisco entenderemos suas preocupações. As cidades estavam a crescer e o comércio passou a ser uma atividade importante. Assim como hoje, todos queriam comprar novidades. Francisco pertenceu ao grupo que hoje a História chama de burgueses. Estes “novos-ricos” passaram a buscar a ostentação como instrumento de seu poder. Era assim que mostravam que tinham que ser respeitados na sociedade onde até então quem mandava eram os nobres.

O Poverello, ao conviver com estes, sabia que esse modo de vida trazia uma prática cristã distante do que deveria ser uma vida de penitência. Nisso encontramos um dos pontos cruciais de nosso carisma. Muitos de nós podemos ter casas luxuosas, carros caríssimos, objetos valiosos, mas devemos questionar se isso está de acordo com a vida que professamos. Não cabem aqui julgamentos. Temos muitas traves em nossos olhos para tratar do cisco dos irmãos. Porém, a reflexão é importante.

Muitas fraternidades no passado possuíam bens de grande valor e isso afastou os irmãos do ideal. Não podemos perder isso de vista. Como dizia Santa Clara: Não perca de vista seu ponto de partida.

Sabemos que tudo que é luxuoso nos chama atenção, por isso condenava o requinte e as baixelas, que nesse texto tornaram-se símbolos daquilo que a cristandade colocava no lugar do Altíssimo. Nas sociedades industrializadas atuais o luxo é algo comum. Mas, isso não pode afetar a vida fraterna. Essa era a preocupação de Francisco. Jesus era pobre, não tinha onde reclinar a cabeça. Nós não devemos viver diferente do mestre. A simplicidade deve permear e balizar nossas vidas. A pergunta que sempre deveria ser feita é: somos detentores de algo ou este algo nos aprisiona?

Peregrinos que somos devemos carregar o mínimo possível em nosso coração. Ou seja, a preocupação com os bens não é principal. Como forasteiros devemos ser sinal de leveza e arautos do Senhor por onde quer que passamos.

 

PARA MEDITAR: 

Como devemos então lidar com os bens que a sociedade no entorno valoriza e muitas vezes atribui valores maiores que a criação de Deus?

E quanto aos bens das fraternidades, como devemos geri-los e que papel devem ter na fraternidade?

E pessoalmente, mesmo que nossas profissões, cargos ou posição social nos proporcionem acesso a bens materiais de valor elevado, como deve ser nosso comportamento? Ou seja, que papel devem ocupar em nossas vidas? Devemos ser colecionadores ou acumuladores?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

 

CAPÍTULO IV

 

Do noviço que desejava ter um saltério com a permissão de S. Francisco

1 Certo dia, um noviço que sabia ler no saltério, ainda que não muito bem, obteve do Ministro Geral autorização para ter um. 2 Mas, porque ouvira dizer que S. Francisco não queria que seus frades tivessem a paixão da ciência e dos livros, não se contentou com esta permissão e quis obter também a de S. Francisco. 4 Passando o Santo pelo lugar onde se encontrava o noviço, este disse-lhe: «Pai, é para mim grande consolação ter um saltério, mas, se bem que já tenha licença do Ministro Geral, não quero usá-lo sem o teu consentimento». S. Francisco respondeu-lhe: «O imperador Carlos Magno, Rolando e Olivério e todos os paladinos e varões que se mostraram valentes na guerra, combatendo contra os infiéis até à morte, sem se pouparem a suores e fadigas, obtiveram sobre eles memoráveis vitórias. 5 Por fim, morreram em combate, como mártires santos, pela fé de Cristo. Hoje, porém, há muitos que só querem receber honras e louvores, pondo-se a contar o que fizeram os heróis. 6 Assim, também entre os nossos, muitos querem receber honras e louvores, recitando e propalando as obras que os santos fizeram». 7 Queria dizer que não se devia cuidar dos livros e do saber, mas das obras virtuosas, porque «a ciência incha e a caridade edifica». 8 Passados alguns dias, estando S. Francisco sentado ao lume, o noviço voltou a falar-lhe no saltério. 9 S. Francisco disse-lhe: «Depois do saltério, apetece-te um breviário. E, cumpridos os teus desejos, repimpas-te numa poltrona, tomas ares de grande prelado e ordenas ao teu irmão: ―Traz-me cá o breviário!‖» 10 Dizendo estas coisas com grande fervor de espírito, S. Francisco pegou em cinza e pô-la na cabeça, traçando um círculo à volta, como se estivesse a lavá-la, e dizendo ao mesmo tempo: «Eu sou o breviário! Eu sou o breviário!» Repetiu muitas vezes estas palavras, passando a mão à volta da cabeça, com grande vergonha e confusão daquele frade. 11 Depois, S. Francisco acrescentou: «Irmão, também eu sofri a tentação de ter livros, mas, para saber a este respeito a vontade do Senhor, peguei no livro onde estavam os seus Evangelhos e pedi-lhe para que me mostrasse a sua vontade na primeira página que eu abrisse. 12 Terminada a oração, a primeira passagem que se deparou aos meus olhos foi a palavra do Santo Evangelho: ―A vós foi-vos dado conhecer os mistérios do Reino de Deus, mas aos outros fala-se-lhes em parábolas”. 13 E acrescentou: «São tantos os homens que desejam ascender à ciência, que devemos ter por feliz aquele que se fizer ignorante por amor do Senhor Deus». 14 Passados muitos meses, estando S. Francisco em Santa Maria da Porciúncula, perto da cela que ficava atrás da casa, à beira do caminho, o dito frade voltou a falar-lhe do saltério. 15 S. Francisco disse-lhe: «Vai e faz como te disse o Ministro». Ouvindo tal resposta, o frade voltou costas e pôs-se a caminho do seu eremitério. 16 S. Francisco, tendo permanecido no caminho, começou a refletir sobre o que dissera àquele frade. Imediatamente o chamou, gritando: «Espera aí, irmão, espera aí!» 17 Tendo-o alcançado, disse-lhe: «Volta comigo atrás e mostra-me o lugar onde te disse para obedeceres às ordens do teu Ministro no que respeita ao saltério». 18 Tendo chegado a esse lugar, S. Francisco ajoelhou-se aos pés daquele frade e disse-lhe: «Eu é que tive a culpa, irmão, eu é que tive a culpa, 19 porque todo aquele que quiser ser frade menor não deve possuir mais do que uma túnica, tal como a Regra lho permite, cordão e panos menores; calçado, só em tempo de manifesta necessidade». 20 Desde então, sempre que os frades vinham pedir-lhe conselho sobre este assunto, respondia-lhes do mesmo modo. 21 Por isso, repetia muitas vezes: «Toda a ciência do homem está nas suas obras e as palavras dum religioso têm de ser comprovadas pelas suas ações, pois pelo fruto se conhece a árvore».

 

REFLEXÃO

No quarto capítulo o texto volta ao assunto dos livros e da discussão sobre o poder que representa possuir bens. Agora trata-se de um noviço que pede a autorização ao seu ministro para possuir um saltério. Lembremos que o primeiro frade que pediu a posse de livros, no capítulo II, tinha uma ideia de que os livros fossem comunitários. Neste já acontece uma “evolução”. Os frades, inclusive os noviços, já iniciam sua vida franciscana solicitando um saltério. Lembremos que o saltério na Idade Média era um livro muito bem-acabado. Possuía muitas iluminuras, sendo por isso considerado um livro luxuoso e muito caro. Ter esse tipo de publicação era sim ter um bem e somente os grandes mosteiros e igrejas os possuíam, assim como as pessoas de alto poder financeiro.

Mesmo assim, os frades passaram a ter o direito a possuí-los. Lógico que, como podemos ver no texto, Francisco era contra. O que nos chama a atenção é que o EP (Espelho da Perfeição) realmente quer frisar a influência dos intelectuais nas mudanças feitas no ideário original. Isso é importante. A Ordem deixava de ser levada pela intuição. Passou a elaborar suas ações de maneira mais sistemática e isso fazia com que a sua essência fosse transformada. Esse fenômeno trouxe muitos embates entre dois grupos que radicalizaram em suas atitudes. Os primeiros, aos quais parece que o autor do EP esteja vinculado, eram os que acreditavam lutar pela manutenção do ideário dos primeiros frades e os outros eram aqueles que apostavam em uma mudança como forma de viver melhor o Evangelho.

Diante do exemplo fornecido pelo texto, vale a pena abrirmos parênteses para falar um pouco de formação e ingresso de novos irmãos nas fraternidades da OFS. Segundo a Regra, em seu artigo 22, a fraternidade local é “o lugar e o espaço que gera e forma cada vocação”. Porém, também cada um de nós somos responsáveis pela manutenção de nossa formação permanente.

No período de formação, deve-se primar pelos elementos mais fundamentais do carisma. O desapego e consciência de como devemos usar os bens materiais é um dos pontos importantes. Será que, mesmo com autorização da Regra, o ministro deveria autorizar de forma indiscriminada o uso do saltério?

Vemos então que os irmãos que entravam na Ordem dos Frades Menores já vinham com valores diferentes aos pregados pelo fundador. Além disso, a atitude daqueles que deveriam formá-los era achar normal as transformações na forma de vida.

No caso da orientação que Francisco dá ao noviço, ele afirmou que também queria ter livros. Isso é uma colocação importante. Ele deixa claro que também tem que abandonar desejos para seguir o caminho. Ele coloca o exemplo como fundamental. Abandonar desejos e vontades em nome do Reino é um passo importante. Mostra o fascínio que o saber causa nas pessoas. Porém, afirmou mais uma vez que o que importava era a sabedoria advinda do Evangelho.

Como já afirmamos em outro momento, o saber é gerador de sentimentos que por vezes vão contra alguns princípios do carisma francisclariano. Lutar, trabalhar, lecionar, rezar, ou realizar qualquer outra atividade em nome de Deus, mas que, na verdade, trata-se de uma busca de honra e reconhecimento, transforma a atitude em prática vã. É sobre isso que o Poverello trata. A fraqueza humana nos leva a instrumentalizar os bens e utilizá-los somente para o nosso bem-estar.

O saber não é o mais importante. Ele faz parte da vida humana. Nos ajuda a discernir e a modificar realidades que antes eram opressoras e injustas. Mas, ele não pode ser por si só instrumento de dominação. Ele deve ser partilhado e discernido em fraternidade. Entre os irmãos não deve haver disputas de quem sabe mais.

Por uma segunda vez Francisco se encontra com o Noviço. Este o questiona novamente sobre o saltério. O Santo de Assis, em um momento de perda de paciência, manda-o seguir o que o Ministro havia falado. Volta atrás na decisão e pede ao frade para ir com ele até o local onde havia falado para ele obedecer. Parece que quer apagar a cena anterior. Aí o admoesta como de costume, ou seja, o ideal seria ter uma túnica, cordão e panos menores. O autor então cita a seguinte fala de Francisco: «Toda a ciência do homem está nas suas obras e as palavras dum religioso têm de ser comprovadas pelas suas ações, pois pelo fruto se conhece a árvore».

E aí vem outro ensinamento que é muito precioso para todos nós franciscanos. O que importa em nossa vida são as atitudes que tomamos. As palavras fazem parte da formação. O Estudo e compreensão do que devemos ser é importante. Mas, para que o Evangelho seja realmente pregado e entendido o importante é a ação.

 

QUESTIONAMENTOS

Nós estamos atentos à formação de nossos iniciantes ou estamos preocupados apenas em aumentar o número de irmãos de nossas fraternidades?

As atitudes individuais e coletivas de nossas fraternidades refletem o que o nosso carisma pede?

Será que em nossa fraternidade replicamos o que é feito na sociedade, ou seja, medimos a importância de cada irmão ou irmã pelos seus diplomas e condição financeira? Será que quando nos encontramos todos somos iguais?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

ESPELHO DE PERFEIÇÃO

 

CAPÍTULO III 

Como S. Francisco respondeu ao ministro que queria ter livros com a sua permissão e como os ministros, sem ele saber, fizeram suprimir da Regra o capítulo sobre as proibições do Evangelho

1 Um dia, depois de S. Francisco ter regressado da sua viagem ao Oriente, um ministro, que se entretinha a falar com ele sobre a pobreza, quis conhecer nesta matéria o pensamento e a vontade do Fundador, 2 tanto mais que então a Regra continha um capítulo sobre as proibições do Santo Evangelho: «Não leveis nada para o caminho», etc.

3 Respondeu-lhe S. Francisco: «Eu penso que os frades nada mais devem possuir do que o hábito com o cordão e os panos menores, como está mandado na Regra. Mas aqueles que se virem compelidos pela necessidade poderão usar calçado». 4 Tornou-lhe o ministro: «Que hei-de fazer então se tenho livros, cujo valor ultrapassa 50 libras?» Falou assim, porque o que ele desejava era possuí-los de consciência tranquila, pois não ignorava que S. Francisco interpretava com rigor o capítulo da pobreza. 5 Replicou-lhe o Santo: «Não quero, nem devo, nem posso ir contra a minha consciência nem contra a perfeição do Santo Evangelho, que nos comprometemos a observar». 6 Ouvindo esta resposta, o ministro ficou triste. S. Francisco, notando a sua perturbação, disse-lhe o que desejaria dizer a todos os frades: «Vós quereis passar por Frades Menores aos olhos dos homens e ser tidos na conta de observantes do Santo Evangelho. Porém, ao mesmo tempo, tudo fazeis para possuir bolsas bem recheadas». 7 Na verdade, ainda que os ministros soubessem que a Regra os obrigava a observar o Santo Evangelho, mandaram suprimir da mesma aquele capítulo em que se lê: «Não leveis nada para o caminho», etc., julgando que não estavam obrigados a observar a perfeição do Evangelho. 8 Quando S. Francisco, por inspiração divina, tomou disto conhecimento, disse na presença de alguns frades: «Os irmãos ministros pensam enganar-nos, a Deus e a mim. Mas, para que os frades saibam que estão obrigados a observar o Santo Evangelho, quero que no princípio e no fim da Regra venha exarado que os frades têm a obrigação de observar firmemente o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. 9 E, para que os frades não tenham jamais desculpa, desde que lhes anunciei e anuncio o que o Senhor se dignou pôr nos meus lábios para minha salvação e deles, quero cumprir estas prescrições na presença de Deus e com a Sua ajuda». 10 Assim foi na verdade, pois observou o Santo Evangelho integralmente, desde o dia em que começou a reunir frades até ao dia da sua morte.

 

REFLEXÃO:

Continuando nossas reflexões, vemos o que para Francisco é fundamental e é a chave de leitura de todos os franciscanos, incluindo a nós franciscanos seculares: “quero que no princípio e no fim da Regra venha exarado que os frades têm a obrigação de observar firmemente o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Temos que compreender isso de forma integral!

Então vamos destrinchar mais este capítulo, o terceiro do Espelho da Perfeição. Primeiro, no Prólogo, um grupo de ministros vai até Elias para demover Francisco de sua ideia de pobreza radical. Depois é a vez de um intelectual tentar modificar seus pensamentos. Agora parece-nos ser um misto dos dois anteriores. Um ministro intelectual.

Vemos que neste capítulo e no anterior, a necessidade de estudar, uma imposição que a Igreja fazia para a vida religiosa, serve de mote para contestar a pobreza. Aqui, um frade o questiona e Francisco começa informando, assim como antes, que os frades deveriam ter um hábito com cordão e uns panos menores. Porém, abre uma exceção, autorizando o uso de um calçado.

O ministro lança uma pergunta sobre a posse de livros. Trata-se de uma armadilha. Se Francisco se coloca contra os estudos estará contra a Igreja. Demonstra também a transformação que a instituição havia passado ao acolher uma grande quantidade de sacerdotes e intelectuais. E apresenta também um problema: estes livros, assim como as ferramentas que o fundador autorizava aos frades, eram instrumentos de trabalho.

O Irmão de Assis não lança uma proibição direta. Afirma, na verdade, a necessidade de observar o Evangelho. Com este chamamento ele quer que os frades tenham a experiência de Cristo como base. Porém eles não entenderam. Muitos se perturbaram, criaram celeumas e, por fim, modificaram a Regra. Segundo o Poverello, todos que inicialmente queriam ser frades menores, aceitavam tudo, mas, posteriormente, mesmo que exteriormente tivessem a figura de observantes do Evangelho, acabavam tendo como um de seus principais objetivos os bens materiais.

E em nossas fraternidades seculares, será que não agimos assim? Fazemos o período de formação, aceitamos a “regra do jogo” e depois passamos a buscar coisas que nada tem a ver com o que professamos?

O texto hagiográfico informa que todos sabiam que o principal era seguir o Evangelho. Mas, mesmo assim, optaram em suprimir a parte da Regra que dizia: “Não leveis nada para o caminho”.

Diante disso, mais uma vez, ele clama pela autoridade de Cristo. Segundo o texto, o que Francisco admoestava era ordenado por Deus. Ele era apenas um alto-falante. Replicava os preceitos que Jesus queria que os frades vivessem. Agora, se os irmãos não o quisessem, ele viveria individualmente, como os outros textos afirmaram anteriormente. Apesar de sua grande paixão pela vida fraterna, o fundador sinaliza que, mesmo que a fraternidade não queira, temos que viver o que professamos.

Para nossas fraternidades seculares, este texto deixa um grande ensinamento. Nossos ministros, não podem ser como estes que o texto trata. Estes buscavam fazer sempre o contrário do que é proposto pelo Evangelho, ou seja, pelo próprio Cristo. Não escutavam a voz de Francisco. Foram contra a Regra. Tentaram modificá-la para “amaciar” a forma de vida.

Cristo é nosso exemplo de humildade. Ele se humilhou para nos salvar! Porém, mesmo assim, nós não queremos buscar a humildade. Se os irmãos, principalmente as lideranças, buscam viver o fausto, a riqueza, o luxo, levar vantagem nas negociações, infelizmente abandonaram o que é o importante, o seguimento do Evangelho.

Segundo Raniero Cantalamessa, no livro Obediência:

(…) A obediência de Jesus consistia em fazer a vontade do Pai, Cristo é já, mesmo como homem, a personificação mesma da vontade do Pai. Sua vida e sua palavra são a forma concreta que para nós assumiu a atual vontade de Deus. (…) Obedecendo ao Pai, Cristo tornou-se causa de salvação para aqueles que agora o obedecem! A vontade de Jesus é a mesma vontade do Pai. Obedecer a Cristo não é obedecer a um intermediário, mas ao mesmo Deus. A obediência ao Evangelho é a nova forma assumida pela obediência a Deus com o advento da Nova Aliança.

Franciscanos seculares que somos, mesmo parecendo sermos observantes do Evangelho, não podemos ter como fim último de nossas vidas os bens materiais. Trabalhar de sol a sol para conseguir aumentar nossa riqueza e abandonar a vida em família e em fraternidade em nome do poder, que vem com o dinheiro, são ilusões que não combinam com a vida franciscana. Obedecer ao Senhor, como diz Cantalamessa, é obedecer ao Evangelho. Não nos preocupemos então em abarrotar os celeiros. Nos preocupemos em viver o Amor.

Não podemos, assim como o ministro do texto, criar situações, com o intuito de modificar as bases de nosso carisma. As fraternidades devem trilhar os caminhos de Jesus, que foram pregados e vividos por Francisco.

Por fim, assim como no outro texto, a vivência dos elemento da vida franciscana secular são responsabilidade de todos. Seja em fraternidade ou individualmente, professamos esta vivência do Evangelho.

Um outro ensinamento que podemos tirar deste texto é a necessidade de obediência aos desejos de Deus. Francisco tinha a pobreza como fundamental, pois captou, no Evangelho, o quão importante ela foi no ministério de Cristo. Sua obediência a Ele passa pela fiel observância dos ditames do Senhor. A pobreza é a essência do Cristianismo.

 

QUESTIONAMENTOS:

Será que nossas fraternidades da OFS têm sido obedientes ao chamado de Cristo?

Como tem sido o serviço dos irmãos que assumem funções? Eles têm buscado a obediência ao Evangelho ou usam seus serviços de forma equivocada?

E nós (eu) tenho sido um irmãos coerente com minha profissão? Tenho buscado servir bem minha fraternidade?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

ESPELHO DE PERFEIÇÃO

PRIMEIRA PARTE

Da Perfeita Pobreza

CAPÍTULO II

Como S. Francisco declarou a sua vontade e intenção sobre a observância da pobreza e como as manteve desde o princípio até ao fim

1 Fr. Ricério da Marca, nobre pelo nascimento mas mais ainda pela santidade, visitou, um dia, no palácio do Bispo de Assis, a S. Francisco, que por ele nutria singular afeição. No decorrer da conversa que teve com ele acerca do estado da Ordem e da observância da Regra, fez-lhe a pergunta seguinte: 2 «Diz-me, Pai, quais foram as tuas intenções, quando começaste a juntar frades; as intenções que tens hoje e que julgas manter até ao dia da tua morte. 3 Pois desejava certificar-me da tua primeira intenção e vontade, assim como da última. Quero que me declares se nós, os frades clérigos, que possuímos tantos livros, podemos tê-los conosco, embora digamos que pertencem à Ordem». 4 Respondeu-lhe S. Francisco: «Quero dizer-te, irmão, que esta foi e é a minha primeira e última intenção e vontade: se os frades me tivessem acreditado, nenhum devia ter consigo mais do que o hábito, tal como vem na Regra, com o cordão e os panos menores». 5 Mas, se algum frade objectar por que razão o bem-aventurado Francisco não mandou a seu tempo observar a estreita pobreza aos frades, nem teve qualquer empenho especial em que fosse observada da maneira que disse a Fr. Ricério, 6 nós que vivemos com ele, responderemos o que ouvimos da sua própria boca, porque ele declarou aos seus frades estas e muitas outras coisas. 7 Além disso, mandou exarar na Regra muitas prescrições que ele, no interesse da Ordem, tinha solicitado ao Senhor durante as suas orações e meditações. Afirmava que eram absolutamente conformes à vontade do Senhor. 8 Mas, depois de as ter dado a conhecer aos frades, estes encontraram-nas duras e impossíveis de suportar, não sendo então capazes de prever o que iria acontecer à Ordem depois da morte do Santo Pai. 9 Porque muito se receava do escândalo em si e nos outros, S. Francisco não queria embrulhar-se em discussões com os frades, mas condescendia, contrariado, com a vontade deles, desculpando-se depois perante o Senhor. 10 Mas, para que a palavra que o Senhor tinha depositado em seus lábios, para utilidade dos frades, não resultasse fruste, quis cumpri-la em si mesmo para obter do Senhor a prometida recompensa. Assim, finalmente, encontrou sossego e consolação para o seu espírito.

 

REFLEXÃO

Vamos tratar neste texto da primeira parte do Espelho da Perfeição, que vem logo após o Prólogo e tem como título “Da Perfeita Pobreza”. Este trecho inicia com o segundo capítulo que foi intitulado: “Como S. Francisco declarou a sua vontade e intenção sobre a observância da pobreza e como as manteve desde o princípio até ao fim”.

Neste, o Santo travou um diálogo com Frei Ricério de Marca, que fazia parte do grupo de clérigos letrados. Na verdade, o religioso foi discutir sobre a questão da posse de livros entre os frades. O texto deixa claro que os livros oficialmente pertenciam à Ordem, ou seja, ao coletivo, mas, na prática, eram uma propriedade velada dos indivíduos pertencentes à instituição franciscana. O que vemos é que há um embate sobre a questão da posse de bens. Para entendermos isso, temos que saber atentar para o fato de que os livros, que hoje já são caros, possuíam um valor ainda mais elevado no período em que a Ordem dos Frades Menores estava se construindo. Era um produto que agregava um grande valor monetário devido ao processo custoso de produção. Quem os possuía fazia parte do grupo que dominava a sociedade, ou seja, tinha um elevado status social.

Como no Prólogo do Espelho da Perfeição, vamos ver o fundador optar pela total ausência de posses. O autor do texto narra que, por Francisco, os únicos bens dos frades, deveriam ser o hábito, o cordão e os panos menores. Aqueles que aderiram ao projeto franciscano posteriormente não conseguiam abraçar de forma completa o ideário. Tinham dificuldade em entender o que Francisco colocou desde o início de sua conversão.

O autor então conclama a outros irmãos que, assim como ele, vivenciaram os primórdios da criação de tal estilo de vida a tornarem-se testemunhas do desejo de Francisco. Esta fala nos faz retornar a frase de Santa Clara, “não perca de vista o ponto de partida”. Informa-nos que aqueles que viveram próximos ao Irmão de Assis, tornaram-se, na visão de quem faz o relato, as testemunhas fidedignas dos desejos dele. O texto quer nos levar a pensar sobre isso. Se alguém inventar alguma moda nova, estes frades serão uma forma de pedra de tropeço.

Assim como no Prólogo, há um retorno, em uma linguagem menos sobrenatural, à presença do Cristo nas decisões tomadas pelo Poverello. Desta forma, as ideias oriundas dos pedidos feitos ao Senhor, durante suas orações e meditações, são incontestáveis. Mesmo assim, como denuncia o escrito, isso não foi suficiente para que os irmãos aceitassem seguir a trilha do caminho espiritual franciscano.

Sem dúvida, esta discussão permeou e ainda permeia a vida franciscana. Porém, naquele momento foi responsável por muitas divisões. Francisco, como um amante da fraternidade, aceitou a vontade da maioria apoiada pela Igreja. Mesmo sofrendo, preferiu manter os irmãos unidos. Porém, após sua morte isso foi impossível.

Isto tem que servir para nossa vida fraterna. Lembrar que nem todos estarão em condições de abraçar a radicalidade. Mas, também não se pode possibilitar o afrouxamento da vivência do carisma por preguiça e desleixo de muitos. O bom senso deve prevalecer. Para isso, o período de formação é essencial. Devemos expor todas as diretrizes e necessidades da vida fraterna francisclariana.

Se ideias “revolucionárias” nos distanciarem da originalidade da vivência do Evangelho, proposto para nós, devemos ser firmes em nossos posicionamentos.

Outro ponto importante do texto é a experiência pessoal. Francisco resolveu viver o que propunha de forma individual. Isso é um ponto fundamental, Devemos viver as propostas franciscanas individualmente. Aí, como o rio que corre para o mar, passaremos a impregnar a fraternidade com a vivência do ideal.

Agora, se nós achamos linda a forma de outras experiências religiosas viverem o sagrado, devemos tomar cuidado em não abafar a forma franciscana em prol das novidades. Uma fé baseada na individualidade e prosperidade é totalmente contra o ideal de pobreza proposto por Francisco e seus primeiros frades para os grupos de penitentes que formaram a Ordem Terceira de São Francisco.

Nossa regra afirma que “Cristo, confiado no Pai, embora apreciasse atenta e amorosamente as realidades criadas, escolheu para si e para sua mãe uma vida humilde. Assim os franciscanos seculares procurem, no desapego, um justo relacionamento com os bens temporais, simplificando suas próprias exigências materiais. Estejam conscientes de que, segundo o Evangelho, são administradores dos bens recebidos, em favor dos filhos de Deus” (n.11).

Este é o caminho. Se temos que usar os bens, temos que ter desapego. Nada é nosso! Só o essencial, ou seja, a túnica, o cordão e os panos menores. Ter o mínimo é o necessário. Para que termos cinco propriedades? Para que termos uma biblioteca inteira com centenas de livros? Para que termos 40 pares de sapatos? Será que preciso usar aparelhos eletrônicos caríssimos? O que realmente é necessário para uma vida franciscana?

Não podemos ser o frade que, em nome de uma necessidade, que julgamos maior, deixa de lado o que é essencial ao nosso modo de vida.

 

Questionamentos:

Como é sua relação com os bens materiais? Poderíamos dizer que vive franciscanamente esta relação?

Com sua fraternidade vive a relação com os bens materiais? Tem algo que achamos que precisa mudar?

Que contribuição a formação com os escritos e a Regra e Vida, a partir do tema proposto, pode trazer para a nossa família, a Igreja e a sociedade como um todo?

 
Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

Paz e bem, irmãs e irmãos da OFS do Brasil!

É com grande alegria que o Conselho Nacional da OFS, a partir da Coordenação de Comunicação, lança seu novo projeto, intitulado “OFS e o Espelho da Perfeição”, que apresentará uma série de reflexões promovidas por convidados sobre os capítulos desta parte de nossas fontes.

Este projeto se inicia dentro do “recente” contexto da inserção da Comunicação como parte da Equipe de Formação. Desse modo, não podemos pensar no serviço da comunicação apenas como um “replicador de notícias”. Propõe-se então que sua atuação seja criativa e integrada aos demais serviços, nos levando à reflexão e ao aprofundamento no nosso carisma de variados modos.

Assim, neste projeto, apresentaremos os capítulos do Espelho da Perfeição e, a cada um deles, teremos um convidado que fará uma conexão entre o texto e nossa realidade enquanto franciscanos seculares, nos provocando a pensar na nossa vivência pessoal e em fraternidade.

Esperamos que aproveitem e que façam chegar a todos os irmãos da nossa Ordem! Paz e bem!

Márcio Bernardo – Coordenador de Comunicação

 

 

ESPELHO DE PERFEIÇÃO (EP)

PRÓLOGO

Aqui começa o Espelho de Perfeição do Frade Menor

CAPÍTULO I

Como S. Francisco respondeu a alguns ministros que não queriam observar a Regra que ele andava a escrever

1 Tendo-se extraviado a segunda Regra redigida por São Francisco, este, acompanhado de Fr. Leão e de Fr. Bonifácio de Bolonha, subiu a um monte com a finalidade de fazer outra Regra. E mandou-a escrever na forma que Cristo lhe inspirou.

2 Mas alguns ministros reuniram-se à volta de Fr. Elias, que era Vigário de S. Francisco, e disseram-lhe: «Ouvimos dizer que Fr. Francisco anda a escrever uma nova Regra e nós receamos que ele a faça tão rigorosa que não possamos observá-la. 3 Queremos, pois, que vás ter com ele e lhe digas que recusamos sujeitar-nos a esta nova Regra. Que a faça para ele, não para nós».

4 A isto respondeu Fr. Elias que não se atrevia a ir, pois receava uma forte reprimenda de Fr. Francisco. Mas os ministros tanto apertaram com ele que resolveu ir, desde que o acompanhassem. Então foram todos juntos. 5 Chegando ao lugar em que se encontrava S. Francisco, Fr. Elias chamou por ele. Ao ver os ministros, o santo perguntou: «O que é que querem estes meus frades?» 6 Logo Fr. Elias se explicou: «Estes frades são ministros que, ao ouvirem dizer que tencionas fazer nova Regra e receosos de que a faças ainda mais apertada do que as anteriores, dizem e protestam que não se querem obrigar a ela e que a faças para ti e não para eles».

7 Então S. Francisco voltou o rosto para o céu e falou assim com o Senhor: «Senhor, não te dizia eu que eles não me acreditariam?»

8 Naquele momento, todos ouviram a voz de Cristo, que lhes falava do céu: «Francisco, nada há na Regra que seja teu, mas tudo quanto nela se encontra a Mim pertence; quero que esta Regra seja observada à letra, à letra, à letra, sem glosa, sem glosa, sem glosa». 9 E acrescentou: «Eu sei de quanto é capaz a fragilidade humana e sei também quanto posso ajudar-vos. Aqueles que não quiserem observar a Regra saiam da Ordem». 10 Então S. Francisco voltou-se para os ministros e disse-lhes: «Ouvistes? Ouvistes? Ou quereis que vo-lo faça repetir?» Os ministros, reconhecendo a sua culpa, retiraram-se confusos e temerosos.

Reflexão 

O primeiro capítulo do Espelho da Perfeição recebe como título: “S. Francisco respondeu a alguns ministros que não queriam observar a Regra que ele andava a escrever”. Esse é o sinal de que algo ia errado na Ordem. Mas o que isso tem a ver com nossa vida Franciscana Secular?

Segundo esta Legenda, alguns ministros foram até Fr. Elias. Estes queriam saber se Francisco estava a escrever outra regra e, caso fosse verdade, queriam que fosse exclusivamente seguida por ele próprio. Não aceitavam a imposição de um novo documento com uma rigidez acima do que se propunham a seguir. Este contexto demonstra que o grupo estava com problemas. Em quantas de nossas fraternidades, em todos os níveis, não acontecem estes enfrentamentos? E em nossas famílias ou no trabalho? Lembremos que o debate e as discussões fazem parte do nosso viver.

Elias aceitou o pedido e foi até o Poverello. Chegando lá sabatinaram o fundador. Na conversa esclareceram que não queriam uma regra mais rígida do que a que tinham. O texto demonstra que os irmãos buscavam um distanciamento da essência do movimento. Viver a rigidez da pobreza e da humildade não é mais válido. Talvez seja visto como algo piegas e sem sentido.

O texto então leva o debate para o sobrenatural. O diálogo passa a ter outro participante. A legitimidade do que Francisco fazia é transferida para a intervenção divina. Francisco pergunta então: “Senhor, não te dizia eu que eles não me acreditam?” Cristo interpela a todos e afirma que a Regra é dele, que ele conhece a fragilidade humana e sabe até onde pode ir, convidando aos insatisfeitos a retirarem-se da Ordem.

Não estamos aqui para discutir a credibilidade dessas palavras. O que precisamos observar é que, em nome de seus desejos, os frades buscavam modificar o ideário do próprio fundador. A rigidez da proposta de Francisco passou a ser questionada.
Será que questionamos nosso modo de viver também em nossas fraternidades da OFS? Será que também relutamos em seguir o previsto em nossa Regra?

O Evangelho é fundamental em nossa vida de franciscanas e franciscanos seculares. É a partir dele que escutamos o Cristo? Francisco sabe disso e nos propõe a adoção dele como parte de nossa vida. Diante disso, outro problema é a adaptação do Evangelho a nossa vida e não o contrário. A tendência é querermos que os princípios que deveriam nortear nossas vidas tornem-se muletas. Na verdade, eles devem ser trilhas, ou seja, caminhos que façam nos levar até a perfeição evangélica.

Não podemos questionar as bases do que temos que viver. Trombar com aquilo que deve ser o maior tesouro em nosso carisma é um erro. Isto é impróprio, pois somos aqueles que devem tornar presente o carisma do nosso Pai Seráfico na vida e na missão da Igreja.

Se um irmão ou irmã busca nos mostrar que não estamos seguindo a trilha do carisma, não podemos vê-los como pessoas inconvenientes. Precisamos abraçar nossa Regra e nosso convívio fraterno. Dialogar e buscar escutar o que o Senhor nos fala através do irmão. A retórica do texto mostra isso.

Temos que entender que inclusive nossas escolhas são baseadas também nos contextos em que vivemos. Nem sempre poderemos viver de forma mais abrangente o que acreditamos. Mas, nosso esforço deve ser para isso. Se os Conselhos e Ministros tentarem nos iluminar o caminho através de nosso carisma, não podemos questionar com o intuito de tornar a trilha mais agradável.

Diferente dos frades que foram interpelar ao Poverello, temos que agir a partir da afirmação feita por Michel Hubaut sobre o leigo franciscano. Para ele este é o que sente o “apelo de seguir a Cristo, à maneira de Francisco de Assis, pois descobre uma cumplicidade espiritual com as intuições de Francisco”.

É isso que o texto tenta mostrar. Francisco faz o que Cristo quer. Quando propõe, não é uma proposição sua e sim do Senhor. Ao lermos e buscarmos seguir a vida franciscana, a partir da Regra e do Evangelho, nossos olhos precisam ver que é próprio Filho de Deus que constrói as trilhas que devemos seguir.

Será duro, mas doce!

Questionamentos:

Como estamos vivendo a radicalidade de nossa Regra?

Será que preferimos viver uma Regra nossa e não a da Ordem?

Os frades criaram conflitos diante da radicalidade do projeto. Mas e nós, como devemos vivenciar o que os exige nossa profissão?

 

Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)

 

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO 
PARA O LIII DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS 
(2 DE JUNHO DE 2019)

 

« “Somos membros uns dos outros” (Ef 4, 25):
das comunidades de redes sociais à comunidade humana »

 

Queridos irmãos e irmãs!

Desde quando se tornou possível dispor da internet, a Igreja tem sempre procurado que o seu uso sirva o encontro das pessoas e a solidariedade entre todos. Com esta Mensagem, gostaria de vos convidar uma vez mais a refletir sobre o fundamento e a importância do nosso ser-em-relação e descobrir, nos vastos desafios do atual panorama comunicativo, o desejo que o homem tem de não ficar encerrado na própria solidão.

As metáforas da «rede» e da «comunidade»

Hoje, o ambiente dos mass-media é tão invasivo que já não se consegue separar do círculo da vida quotidiana. A rede é um recurso do nosso tempo: uma fonte de conhecimentos e relações outrora impensáveis. Mas numerosos especialistas, a propósito das profundas transformações impressas pela tecnologia às lógicas da produção, circulação e fruição dos conteúdos, destacam também os riscos que ameaçam a busca e a partilha duma informação autêntica à escala global. Se é verdade que a internet constitui uma possibilidade extraordinária de acesso ao saber, verdade é também que se revelou como um dos locais mais expostos à desinformação e à distorção consciente e pilotada dos factos e relações interpessoais, a ponto de muitas vezes cair no descrédito.

É necessário reconhecer que se, por um lado, as redes sociais servem para nos conectarmos melhor, fazendo-nos encontrar e ajudar uns aos outros, por outro, prestam-se também a um uso manipulador dos dados pessoais, visando obter vantagens no plano político ou económico, sem o devido respeito pela pessoa e seus direitos. As estatísticas relativas aos mais jovens revelam que um em cada quatro adolescentes está envolvido em episódios de cyberbullying.[1]

Na complexidade deste cenário, pode ser útil voltar a refletir sobre a metáfora da rede, colocada inicialmente como fundamento da internet para ajudar a descobrir as suas potencialidades positivas. A figura da rede convida-nos a refletir sobre a multiplicidade de percursos e nós que, na falta de um centro, uma estrutura de tipo hierárquico, uma organização de tipo vertical, asseguram a sua consistência. A rede funciona graças à comparticipação de todos os elementos.

Reconduzida à dimensão antropológica, a metáfora da rede lembra outra figura densa de significados: a comunidade. Uma comunidade é tanto mais forte quando mais for coesa e solidária, animada por sentimentos de confiança e empenhada em objetivos compartilháveis. Como rede solidária, a comunidade requer a escuta recíproca e o diálogo, baseado no uso responsável da linguagem.

No cenário atual, salta aos olhos de todos como a comunidade de redes sociais não seja, automaticamente, sinónimo de comunidade. No melhor dos casos, tais comunidades conseguem dar provas de coesão e solidariedade, mas frequentemente permanecem agregados apenas indivíduos que se reconhecem em torno de interesses ou argumentos caraterizados por vínculos frágeis. Além disso, na social web, muitas vezes a identidade funda-se na contraposição ao outro, à pessoa estranha ao grupo: define-se mais a partir daquilo que divide do que daquilo que une, dando espaço à suspeita e à explosão de todo o tipo de preconceito (étnico, sexual, religioso, e outros). Esta tendência alimenta grupos que excluem a heterogeneidade, alimentam no próprio ambiente digital um individualismo desenfreado, acabando às vezes por fomentar espirais de ódio. E, assim, aquela que deveria ser uma janela aberta para o mundo, torna-se uma vitrine onde se exibe o próprio narcisismo.

A rede é uma oportunidade para promover o encontro com os outros, mas pode também agravar o nosso autoisolamento, como uma teia de aranha capaz de capturar. Os adolescentes é que estão mais expostos à ilusão de que a social web possa satisfazê-los completamente a nível relacional, até se chegar ao perigoso fenómeno dos jovens «eremitas sociais», que correm o risco de se alhear totalmente da sociedade. Esta dinâmica dramática manifesta uma grave rutura no tecido relacional da sociedade, uma laceração que não podemos ignorar.

Esta realidade multiforme e insidiosa coloca várias questões de caráter ético, social, jurídico, político, económico, e interpela também a Igreja. Enquanto cabe aos governos buscar as vias de regulamentação legal para salvar a visão originária duma rede livre, aberta e segura, é responsabilidade ao alcance de todos nós promover um uso positivo da mesma.

Naturalmente não basta multiplicar as conexões, para ver crescer também a compreensão recíproca. Então, como reencontrar a verdadeira identidade comunitária na consciência da responsabilidade que temos uns para com os outros inclusive na rede on-line?

«Somos membros uns dos outros»

Pode-se esboçar uma resposta a partir duma terceira metáfora – o corpo e os membros – usada por São Paulo para falar da relação de reciprocidade entre as pessoas, fundada num organismo que as une. «Por isso, despi-vos da mentira e diga cada um a verdade ao seu próximo, pois somos membros uns dos outros» (Ef 4, 25). O facto de sermos membros uns dos outros é a motivação profunda a que recorre o Apóstolo para exortar a despir-se da mentira e dizer a verdade: a obrigação de preservar a verdade nasce da exigência de não negar a mútua relação de comunhão. Com efeito, a verdade revela-se na comunhão; ao contrário, a mentira é recusa egoísta de reconhecer a própria pertença ao corpo; é recusa de se dar aos outros, perdendo assim o único caminho para se reencontrar a si mesmo.

A metáfora do corpo e dos membros leva-nos a refletir sobre a nossa identidade, que se funda sobre a comunhão e a alteridade. Como cristãos, todos nos reconhecemos como membros do único corpo cuja cabeça é Cristo. Isto ajuda-nos a não ver as pessoas como potenciais concorrentes, considerando os próprios inimigos como pessoas. Já não tenho necessidade do adversário para me autodefinir, porque o olhar de inclusão, que aprendemos de Cristo, faz-nos descobrir a alteridade de modo novo, ou seja, como parte integrante e condição da relação e da proximidade.

Uma tal capacidade de compreensão e comunicação entre as pessoas humanas tem o seu fundamento na comunhão de amor entre as Pessoas divinas. Deus não é Solidão, mas Comunhão; é Amor e, consequentemente, comunicação, porque o amor sempre comunica; antes, comunica-se a si mesmo para encontrar o outro. Para comunicar connosco e Se comunicar a nós, Deus adapta-Se à nossa linguagem, estabelecendo na história um verdadeiro e próprio diálogo com a humanidade (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 2).

Em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus, que é comunhão e comunicação-de-Si, trazemos sempre no coração a nostalgia de viver em comunhão, de pertencer a uma comunidade. Como afirma São Basílio, «nada é tão específico da nossa natureza como entrar em relação uns com os outros, ter necessidade uns dos outros».[2]

O panorama atual convida-nos, a todos nós, a investir nas relações, a afirmar – também na rede e através da rede – o caráter interpessoal da nossa humanidade. Por maior força de razão nós, cristãos, somos chamados a manifestar aquela comunhão que marca a nossa identidade de crentes. De facto, a própria fé é uma relação, um encontro; e nós, sob o impulso do amor de Deus, podemos comunicar, acolher e compreender o dom do outro e corresponder-lhe.

É precisamente a comunhão à imagem da Trindade que distingue a pessoa do indivíduo. Da fé num Deus que é Trindade, segue-se que, para ser eu mesmo, preciso do outro. Só sou verdadeiramente humano, verdadeiramente pessoal, se me relacionar com os outros. Com efeito, o termo pessoa conota o ser humano como «rosto», voltado para o outro, comprometido com os outros. A nossa vida cresce em humanidade passando do caráter individual ao caráter pessoal; o caminho autêntico de humanização vai do indivíduo que sente o outro como rival para a pessoa que nele reconhece um companheiro de viagem.

Do «like» ao «amen»

A imagem do corpo e dos membros recorda-nos que o uso da social web é complementar do encontro em carne e osso, vivido através do corpo, do coração, dos olhos, da contemplação, da respiração do outro. Se a rede for usada como prolongamento ou expetação de tal encontro, então não se atraiçoa a si mesma e permanece um recurso para a comunhão. Se uma família utiliza a rede para estar mais conectada, para depois se encontrar à mesa e olhar-se olhos nos olhos, então é um recurso. Se uma comunidade eclesial coordena a sua atividade através da rede, para depois celebrar juntos a Eucaristia, então é um recurso. Se a rede é uma oportunidade para me aproximar de casos e experiências de bondade ou de sofrimento distantes fisicamente de mim, para rezar juntos e, juntos, buscar o bem na descoberta daquilo que nos une, então é um recurso.

Assim, podemos passar do diagnóstico à terapia: abrir o caminho ao diálogo, ao encontro, ao sorriso, ao carinho... Esta é a rede que queremos: uma rede feita, não para capturar, mas para libertar, para preservar uma comunhão de pessoas livres. A própria Igreja é uma rede tecida pela Comunhão Eucarística, onde a união não se baseia nos gostos [«like»], mas na verdade, no «amen»com que cada um adere ao Corpo de Cristo, acolhendo os outros.

Vaticano, na Memória de São Francisco de Sales, 24 de janeiro de 2019.

 

Franciscus
 


[1] Para circunscrever o fenómeno, será instituído um Observatório internacional sobre cyberbullying, com sede no Vaticano.

[2] Grandes Regras, III, 1: PG 31, 917. Cf. Bento XVI, Mensagem para o XLIII Dia Mundial das Comunicações Sociais (2009).

 

Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications/documents/papa-francesco_20190124_messaggio-comunicazioni-sociali.html

 
 
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