Terça, 21 Fevereiro 2023 19:28

SOBRE A CAMPANHA DA FRATERNIDADE por Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

I. -  SOMOS TODOS IRMÃOS

Olá, meus amigos!  Ano após ano somos levados a viver,   em nossa  Igreja, um tempo litúrgico e espiritual todo especial chamado de Quaresma.  Somos convidados a, lentamente, ir fazendo  renascer dentro de nós todas as disposições  fundamentais do ser cristão,  de modo todo particular, o ser irmão, a dimensão fraterna, o calor dos encontros, a luta contra a exclusão  Esperamos, assim, poder, na Semana Santa, celebrar com toda  verdade  os grandes mistérios de  Cristo e de nossa vida: a quinta-feira santa do lava-pés e da eucaristia, a sexta-feira das dores, o silêncio do sábado santo e o esplendor da Páscoa.   Não queremos que tudo seja vivido apenas de maneira exterior e rotineira.  Queremos mergulhar  no Mistério de Cristo e nosso, passagem de Cristo e passagem  nossa,  tentativa de viver em nós os mistérios de  Cristo. “Não existe maior amor do que dar a vida por quem se ama”.  Morte  do homem velho e surgimento do homem novo, solidário, fraterno.

Durante esses quarenta dias, de modo especial, as leituras bíblicas dominicais e semanais,  as profundas homilias do  Ofício das Leituras  da Liturgia das  Horas vão questionar nossa vida e nos fazer atentos à renovação de nossa vida e da Igreja.  Quaresma: tempo de reflexão, de gestos de penitência, de exame de nossa consciência.  Tempo do deserto  e da montanha da transfiguração.  Tempo de ouvir a voz do  Senhor.

Na  quarta-feira da poeira, das cinzas, inaugura-se entre nós a Campanha da Fraternidade que este ano  tem como tema:  Fraternidade e Fome e cujo lema é  “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Fraternidade,  pessoas que se estimam. Irmãos que vivem com irmãos.  Quantas formas de fraternidade.  Quantos irmãos e quantas  irmãs.  Também quanta falta de fraternidade.  Quantos irmãos que não falam com irmãos.  Quantos gestos de carinho.  Fraternidade de sangue, fraternidade de amizade.   Guerras, gente morrendo de fome,  pessoas fugindo das terras da miséria,  falta de repartição dos bens, acumulação vergonhosa de bens com alguns,  corrupção  subtraindo as verbas que se destinariam a todos e que vão parar nos paraísos fiscais e satisfação do grupo dos espertalhões.

Tudo isso fere os corações retos e aos cristãos que vivem a quaresma e que vão contemplar  o amor daquele que dá a vida pelos seus.  Somos todos irmãos, vivemos do mesmo Pai.  Pobres e aquinhoados, bonitos e feitos, negros, amarelos e brancos, nigerianos e canadenses, flores e verde, água e rios, terra e vento.  Somos todos irmãos.  Temos vontade cantar e decantar essa fraternidade no seio do Criado.

 

II. - PEQUENOS ACHEGOS DE FRATERNIDADE

Nesta página elenco de posturas muito simples que facilitam  a fraternidade em nível bem perto de nós.  Trata-se de um querer bem  prático.  Temos medo de discursos solenes sobre fraternidade que não levam a lugar nenhum. O outro, o diferente, o singular.

O que é aceitação do outro?

  • Receber amorosamente pessoa em sua singularidade única.
  • Valorizar positivamente seu modo de agir, seus sentimentos, seus propósitos.
  • Perceber o que o outro  sente em sua originalidade partindo de seu mundo interior.
  • Confiar vivamente na capacidade de crescimento da pessoa.

 Como se facilita a aceitação do outro?

  • Sentir as coisas como as sente o outro.
  • Dando sinais de querer se aproximar do outro.
  • Mostrando sinceramente interesse pelo outro.
  • Sendo paciente da escuta.

 O que dificulta a aceitação do outro?

  • Concordar sempre com o modo de agir do outro.
  • Estudar a pessoa à distância.
  • Ter uma atitude prevalentemente crítica.
  • Ter curiosidade ávida a respeito da intimidade do outro.

Clima comunitário

Todos os que tentamos  vivencias a Campanha da Fraternidade somos pessoas que criamos, lá onde estamos, um clima comunitário:

  • Ambiente agradável e de mútua acolhida.
  • Estar disposto para a colaboração.
  • Alegria pelo encontro com os irmãos e sua presença.
  • Agilidade em compreender e desculpar o irmão.
  • Saber alimentar sentimentos fraternos de certa intensidade.
  • Ausência de murmuração e espírito de crítica.

 

III. - FOME

Trazemos, nesta conversa,  reflexões de Luciano Manicardi em seu livro:  A caridade dá que fazer (Paulinas de Portugal):

  • Segundo números fornecidos pela  FAO, agência da ONU para a alimentação e a agricultura, que referem mais de mil milhões de pessoas (um sexto da população mundial)  passam fome.
  • Alimentação insuficiente, má nutrição, carência de vitaminas e de minerais essenciais, sub alimentação.  Estas e outras carências  levam ao emagrecimento, ou a uma intempestiva obesidade,, debilidade muscular, envelhecimento precoce e morte por inanição.
  • A situação é dramática sobretudo para as crianças: muitas vezes vemos bebês de barriga inchada , magreza assustadora, pela enrugada, olhar  vago, apatia.
  • Conhecemos todos essas imagens deprimentes que nos transmitem os meios de comunicação e mesmo temos ocasião de ver  perto de nós crianças revirando  latas de lixo para comer restos de comida, produtos rejeitados. Muitos comem demais.  Não controlam a avidez de comer. Tornam-se obesos e pesados em todos os sentidos.
  • “Toda pessoa tem direito a uma nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários” ( Artigo 25  da Declaração  universal dos direitos do homem).
  • Manicardi: “Toda gente sabe, hoje em dia, que  a fome não é um problema irresolúvel ou fato a que  nos devemos  resignar de forma definitiva.  As causas são políticas e econômicas e a principal é a  distribuição desigual das riquezas”.
  • Ainda Manicardi: “Alcançar a segurança alimentar ( possibilidade para todos de aceder física e economicamente a alimento suficiente e seguro)  é essencial para a paz e a segurança do mundo inteiro.  Desde sempre houve muitas revoltas por causa do pão.
  • Texto de Bento XVI:  “ Os direitos  à alimentação e  à água  revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar o  direito fundamental à vida.  Por isso, é necessária a maturação de uma consciência solidária  que considere a alimentação e o acesso à agua  como direitos universais de todos os seres humanos,  sem distinções nem discriminações.  Além disso, é importante pôr em evidência que o caminho da solidariedade com os países pobres pode constituir um projeto de  solução  para a presente  crise global, como homens políticos e  responsáveis de instituições internacionais têm intuído  nos últimos tempos” (Caritas in veritate 27).

 

IV. - “DAI-LHES VÓS MESMOS DE COMER” Mateus  14,16

Uma Campanha da Fraternidade  que nos leva a refletir sobre o comer, sobre o grave problema de seres humanos, irmãos nossos, que morrem de fome.  Conhecemos a passagem dos evangelhos em que os apóstolos propõem ao Mestre de despedir a multidão  faminta que, ali naquele deserto, não encontraria alimento.  Ressoa sempre aos nossos ouvidos a palavra de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Todos têm o direito ao alimento que sustente seus corpos. De outro lado, clamamos por políticas  que atendam esse direito universal de todo ser humano.  A eliminação da miséria e do drama da fome depende de uma tomada de consciência universal de que os bens da terra são para todos.  As campanhas de erradicação da fome obedecem ao  pedido-ordem de Jesus: “Dai-lhes  vós mesmos de comer”.

O alimento  que  nutre o corpo,  fortalece o ser interior de quem o come.  Corpo e espírito.  Mens sana incorpore sano.  Convenientemente alimentados teremos homens e mulheres mais conscientes do pleno significado de ser gente, ser homem, ser  mulher.  Pessoas lúcidas que possam abrir caminhos novos de  humanidade.

“Não existe para o homem. uma anuência mais total a tudo que o circunda  do que o ato de comer.  É o modo humano de dizer o próprio sim, porque se trata ao mesmo tempo de um sim ao corpo e à alma.  Cada pedaço de pão  é, de certo modo, um pedaço do mundo que nós aceitamos comer” (G. Martelet).

Ficamos encantados  com tantas belas iniciativas de grupos da sociedade, mormente de um sem número  de comunidades cristãs. O tempo da pandemia, catástrofes climáticas  fizeram e fazem vir à tona  belas iniciativas  de assistência e alimentação dos mais necessitados. Muitos cuidam de, mensalmente, oferecem cestas básicas para os pobres.   Os vicentinos continuam a fazer belamente seu serviço de visita aos necessitados e de cuidar de suas necessidades. Estamos diante de  gestos de partilha e de solidariedade que  obedecem à ordem:  “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

Um  pensamento de José Antonio Pagola: “ A luta  em favor do desarmamento, a proteção do meio ambiente, a solidariedade com os povos famintos, o compartilhar com os desempregados  as consequências da crise econômica, a ajuda aos dependentes de drogas, a preocupação com os idosos  solitários e esquecidos... são exigências  para quem se sente irmão e deseja multiplicar  para todos o pão de que necessitamos para viver.  O relato evangélico nos lembra que não podemos comer tranquilos  o nosso pão e o nosso peixe, enquanto perto de nós há tantos homens e mulheres ameaçados  por tantas “fomes”. Nós que  vivemos tranquilos temos que ouvir as palavras de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.

 

V. - COMER É ATO DE HUMANIDADE

  • Comer é uma arte: sabe comer quem está à altura da própria humanidade.  Diz um autor: “Os animais alimentam-se, o homem come; só o homem inteligente sabe  comer”.  Comer, porém,  requer tempo e capacidade de  relação e de comunhão.  A  cultura  do fast food  obriga a comer apressadamente e sozinhos, em mesas anônimas, de pé, num snack bar,  ou utilizando refeições preconfecionadas e alimentos congelados.  Além disso, muitas vezes,  o alimento não é recebido, mas tomado, separado de uma relação com que o prepara e o prepara para mim.  Impessoalidade, individualismo, pressa e também perda do gosto  estão a matar a arte de comer e de preparar e servir a comida.
  • Sintomas deste corte entre o comer e seu fundamento humano e relacional são as desarmonias e as patologias em rápido crescimento  nos países ocidentais, em que,  apesar de tudo. existe uma abundância de alimento e de dinheiro para compra-lo: obesidade, anorexia, bulimia, distúrbios  alimentares de vários tipos.  Tanto na  carência como na abundância  está em jogo a humanidade das pessoas e a sua dignidade.
  • O alimento deve ser   “Dar de comer” também significa preparar a comida, cozinhar.  A preparação da comida é uma arte de passagem do cru ao cozido, da natureza à cultura;  é o trabalho que pode chegar a ser uma  obra prima.  Além disso, cozinhar e preparar o alimento para alguém equivale a dizer:  “Eu quero que tu vivas” ou “Não quero que tu morras”.  Preparar a comida é a mais  concreta manifestações de amor.  Se entre os seres humanos  existe um amor incondicional, esse é o da mãe  pelo próprio  filho, e a mãe não somente dá o alimento, mas também é alimento para o filho ao menos até o desmame.  A relação com a mãe recorda que quem quer que venha ao mundo experimenta que outros lhe dão de comer e que cada filho do homem deve aprender gradualmente a alimentar-se a si próprio, a comer sozinho.  Mas também recorda a dimensão afetiva do ato de comer.
  • Pensamentos de Luciano Manicardi: “A caridade dá que fazer”.

 

VI. - ESSAS TANTAS MESAS

Há muitos jeitos de  fazer nossas refeições e de tantas pessoas.  Permitam leva-los pela mão e pedir que olhem comigo  certas cenas em torno ao gesto de comer.

A criança louca de fome  chora, berra.  Quer o peito da mãe.  Sôfrega ou suavemente se acalma, se aquieta.  Suga o que pode sugar até largar o peito da mãe e cair de sono, satisfeita, apaziguada.

Há essas mesas de domingos, ou de outros dias, ou de certas noite em que quase todos estão em casa. Jantar ou lanche mais solene em torno a uma mesa.  Celulares e televisão desligados.  Quem sabe até uma refeição precedida por uma oração, uma breve leitura do Novo  Testamento.  Comida normal, mas com o sabor de uma “gostosa” proximidade de corações.

Das portas dos prédios da grande cidade, das fábricas e repartições publicas  contadores e economistas, porteiros e faxineiros, estafetas e boys saem para almoçar com  o cartão de refeição. Vão juntos ou separados.  Comem mais ou menos rapidamente.  Há aqueles e aquelas que depois de um cafezinho,  fumam um cigarro.  São poucos. No momento muito poucos.  “O  Ministério da Saúde adverte:  fumar é prejudicial à saúde”

Pelas  11,30 é a hora do almoço nos hospitais e casas de saúdes os doentes vêm chegar o carrinho com as bandejas de coisas leves, sem muito gosto, quase sem sal.  O que salva ainda é uma fruta e uma gelatina.  Saudades de um pedaço de carne e de uma macarronada.  Há  não poucos desses enfermos que perderam a vontade de comer...

Chegam à  minha mente imagens do refeitório de um presídio de homens com seu prato e talheres. Panelões. Cada um é servido. Rancho.  Arroz, feijão, um pedaço de frango. Ou uma sopa de legumes.  Uns se sentam perto dos outros. Chegam a trocar ideias,  mas o barulho  impede as aberturas do coração e as conversas que poderiam aliviar a solidão. Depois os  presidiários sentam-se à sombra,  palitam os dentes e suplicam a Deus que faça com que as horas passem mais depressa.

Por aqui  vamos ficando e se estiver na hora do almoço ou da janta: “Bom apetite”.

 

VII. - FELIZES OS QUE TÊM FOME...

Aos domingos,  nós católicos, participamos da celebração eucarística.  Desde pequenos fomos orientados para ir à missa e “tomar a comunhão”.  Não sei com o tempo  chegamos a  compreender melhor esse gesto.  Nunca captaremos todo o significado desse que é  Pão da Vida.  Nós somos e seremos sempre famintos da Vida que nos oferece  o Filho de  Deus. Felizes os que têm fome porque serão saciados.  Pouco  ditosos os satisfeitos,os que pensam já ter atingido as estrelas . Temos sempre receio de estamos por demais satisfeitos com a vida que levamos.  Sempre haveremos de nos perguntar se temos fome daquele que se definiu como Pão da vida. Vida dada em prol da vida dos outros.

Lá está a mesa, o altar. Toalha branca  bem cuidada.  Uma comida e uma bebida.  Pão e vinho.  Ele, o  Senhor Jesus,  havia se declarado  pão da vida, alimento da vida dos seus.  Na ceia da despedida, em torno a uma mesa, afirmava que o pão era seu corpo e o vinho seu sangue.  Era a véspera de sua paixão. Ali, na ceia da despedida, ele se tornava pão da vida dos seus. No dia seguinte, na tarde da sexta-feira, ele haveria de dar sua carne e derramar o seu sangue num gesto de amor.  O pão e o vinho da véspera  prefiguravam  o dom de todo ele no altar.

Felizes os convidados para o banquete do Senhor. Todos os que, purificados interiormente, participam da vida de  Jesus.  Comungar, entrar em comunhão.  Os que não estamos satisfeitos com nossa busca de santidade, com nosso jeito superficial de viver a fé, apesar de tudo.. nós que temos a certeza de estarmos sendo alimentados pelo amor de Deus,  comungamos. De alguma forma fazemo-nos pão para o mundo, alimento para o mundo, entrando em comunhão com aquele que deu a vida pelos seus. Comungar  Cristo  no sacramento é assumir o compromisso de tornar pão para os outros, vida para a vida dos outros.

Participamos da  missa.  Arrependemo-nos de nossas faltas.  Ouvimos palavras de vida que ressoam na catedral de nossa interioridade. Colocamos nossa vida com o pão e o vinho  sobre o altar. Fazemo-nos oferta. Chega um momento em que caminhamos até o altar, como mendigos famintos,  mas convidados para o banquete nupcial do Cordeiro. Os famintos são saciados. “O Corpo de Cristo”. Amém.

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