Introdução
Contemplamos hoje a passagem de São Francisco desta realidade humana para a Vida Eterna. Celebramos o Trânsito (Pascoa, Passagem, morte) de São Francisco de Assis.
1º Parte
No dia 14 ou 15 de setembro de 1224, Francisco recebe em seu corpo, no alto do Monte Alverne, os estigmas de Jesus Cristo. A partir desse momento até sua morte no entardecer de 03 de outubro de 1226, carregará no seu corpo, as marcas da Paixão de Jesus e na alma o amor que o Cristo sentiu pela humanidade, decidindo se entregar como Salvador na Cruz, transformando a morte em Ressurreição.
Este desejo que palpitava no coração de Francisco nasceu no seu encontro com a voz misteriosa em Spoleto (1205) que lhe envia de volta a Assis, como Paulo a Damasco, voz de Deus que o envia para uma jornada não mais de glórias humanas, mas de serviço ao Senhor no seu encontro com o Cristo Crucificado em São Damião, no beijo dado ao leproso nas redondezas de Assis.
Este beijo no leproso, espúria da sociedade, relegado ao sofrimento e a morte em vida, introduz Francisco, naquilo que chamamos de “mística humanizante e compaixão”. Francisco, abrindo-se à voz de Deus, serenamente, abre-se, sem medidas ao próximo, ao outro, num processo constante de ALTERIDADE.
Francisco coloca-se no lugar do pobre, do leproso, do marginalizado. Descobre que é ali que Deus lhe mostra o caminho da Santidade. Ali, pode tornar-se um outro Cristo para o homem sofredor. Espelhando no exemplo de Jesus, Francisco, acolhe o outro, olha/enxerga o irmão em sua frente (insisto) coloca-se no lugar do outro e sente compaixão (no original) “deixa mover suas entranhas | não num superficialismo externo | mas, experimenta o que o pobre vive | coloca-se no lugar do outro e caminha com sua dor | paixão | ‘compaixão’” (faz-se companheiro na dor).
Assim, podemos, nessa noite, entender/experimentar esta mística humanizante e da compaixão | esta busca franciscana das coisas divinas e espirituais. A santidade de Francisco passa pelo outro | é horizontal | encontrando o pobre, o leproso | ele encontra Deus em seu infinito amor pelos homens | um Deus que acolhe o pecador e faz uma grande festa para restituir sua dignidade perdida (diz o Pai na parábola do filho pródigo: “Façamos uma grande festa, pois este meu filho estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado). Este é o espírito que move Francisco na sua experiência de santidade.
2º Parte
Agora, voltemos novamente nosso olhar para a cena de sua morte, naquele pôr-do-sol em torno da igreja da Porciúncula, nú sobre o solo de Assis, rodeado pelos irmãos… De seus lábios brotam os versos iniciais do Salmo 141: “Eu vos peço, Senhor, vinde rapidamente a mim… ouvi a minha voz que vos chama… em vós busco refúgio; não me deixeis indefeso.”
Nesse momento de uma autenticidade incontestável é que se manifesta o pensamento de humanidade, simplicidade, despojamento e compaixão do Poverello de Assis. Sua humildade é de uma sinceridade que se impõe, é absoluta, sem que se pense em julgá-la exagerada. É o cumprimento de sua missão, com tranquilidade e serena segurança. Não é ele o arauto do grande Rei? A sua mística humanizante e da compaixão pelo próximo se mostra ao mesmo tempo totalmente divina e completamente pessoal.
A consciência individual proclama sua autoridade soberana: “Ninguém me mostrou o que devia fazer, mas o Altíssimo mesmo revelou-me que devia viver conforme o santo Evangelho. ”
Francisco entra no mistério da morte cantando, sem medo, porque sabe que vai para os braços amorosos do Pai. Encontramos neste gesto sublime de entrega e abandono um caminho para humanizar nossa relação com o outro e levar-nos a ter compaixão do irmão, para adentrarmos como Francisco no caminho da eternidade.
Francisco quis ser deitado nú na terra, porque queria morrer nos braços de sua Dama Pobreza. De imediato abarcou os vinte anos que se tinham passado após sua união: “Cumpri meu dever, que Cristo agora vos ensine o vosso!”, disse ele aos irmãos.
Que a celebração da Vida e Morte de Francisco nos impulsione a vivermos em nossas relações com o próximo a mística humanizante e da compaixão. Só assim poderemos dizer, como Francisco, que cumprimos verdadeiramente, nosso dever de amar e doar-se sem medidas!
Conclusão
Os irmãos e amigos contemplam Francisco no confronto definitivo com a irmã morte; nú diante do Cristo nú; de seus lábios moribundos ainda se ouvem os versículos do Salmo 141: “Enquanto desfalece em mim o meu espírito, exponho a seus olhos a minha tribulação; Elevei os meus braços a ti, ó Senhor; Tu és a minha esperança, a minha porção na terra dos vivos. Tira do cárcere a minha alma, a fim de que eu dê o louvor ao teu nome; os justos esperam o momento em que me serás propício”.
Dessa forma, enquanto Francisco morria e a tarde começava a desmaiar, sua prece final foi um gesto sublime, o ato pelo qual ele exprimia o que era e de quem era filho, prestes a renascer na eternidade. No âmago de seu ser, Francisco finalmente dependia absoluta e unicamente de Deus. Sua pobreza era absoluta: nada existia entre ele e Deus.
A radiosa luz azulada da tarde brilhou por sobre o vale e cobriu as montanhas de Assis. Ao descrever seus últimos momentos, os amigos de Francisco nunca esqueceram um último detalhe: “Muitos pássaros, chamados cotovias, esvoaçaram por sobre o teto da cabana onde ele jazia, fazendo grandes círculos e cantando.”
Frei Joaquim Camilo Alves, OFM