Sábado, 19 Setembro 2020 15:11

Francisco e Clara contemplam a vida: Peregrinos e contemplativos

Contemplar é ser receptivo à realidade, abrir ao máximo os poros da sensibilidade para captar os sinais da realidade exterior, para conectar-se com o que se oculta atrás dela, com aquilo que permanece subjacente, invisível aos olhos. Isso exige a máxima transparência, a vontade de abraçar tudo o que existe; consiste em diluir-se nela e despossuir-se a si mesmo. (Francesc Torralba)

A verdade é que nossas sociedades ocidentais estão vivendo uma silenciosa mudança de paradigma: o excesso (de emoções, de informação, de expectativas, de solicitações...)  está atropelando a pessoa humana e empurrando-a para um estado de fadiga, de onde é cada vez mais difícil retornar. O risco é o aprisionamento permanente nesse cansaço, como explicava profeticamente Fernando Pessoa: Estou cansado, é claro, / Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. / De que estou cansado, não sei:/ De nada me serviria sabe-lo/ Pois o cansaço fica na mesma. (José Tolentino Mendonça)

 

  • Importante é viver. Viver intensamente. Não empurrar a história para frente a todo custo. Viemos do abismo do nada. O Senhor quis que existíssemos. Chegamos a um espaço onde ganhamos leite, pão, carinho, afeto, cama para dormir e a vida para viver. Tudo ia acontecendo, simplesmente acontecendo. Quem sabe, um dia, compreendemos que precisávamos de uma claridade para viver. Fazer escolhas. Não deixar que fôssemos presas da mesmice e de uma fatalística rotina. Pessoas à nossa volta, doentes e sadios, colegas de trabalho, uns que nos atraiam e pessoas que nos eram indiferentes. Começamos a pensar que precisávamos dar um sentido a esses dias que se repetem, às ânsias de nosso coração, aos apelos da vida. Normalmente deveríamos ser pessoas e seres de perguntas e de questionamentos. Queríamos, ou queremos, ser pessoas despertas. Não queremos viver adormecidos.

 

  • Católicos fomos batizados crianças ainda, fizemos a primeira comunhão, celebramos o Natal e a Páscoa, fomos crismados, pagamos o dízimo, entramos sempre na fila da comunhão, preparamos os pais para o batizado de seus filhos em serviços pastorais, animamos a missa das 8h. Talvez um dia percebemos que a rotina poderia nos matar. Simplesmente fazedores de coisas. Homo laborans. Produzir, rapidamente, bons resultados, tudo picadinho, aos pedacinhos. Num determinado momento de nossa vida de católicos, achamos que poderíamos viver mais densa e mais profundamente, deixando-nos impregnar do espirito e do jeito de viver de Francisco: espanto diante de tudo, viver numa sala de espera para as visitas de Deus, êxtase diante do Altíssimo, simplicidade de viver, incomensurável paixão pelo Cristo feito irmão, feito trapo, feito amor no alto da cruz, cortesia para com as criaturas, amor acendrado por Cristo de tão intensidade. E Francisco nos apresentou à Clara.

 

  • Muitos aspectos e ângulos da vida de Francisco nos encantaram e continuam a nos encantar: o irmão, o dançarino diante da natureza, o simples, o criativo. Um dos aspectos de sua vida que nos toca é seu gosto pelo silêncio, pelo sereno, seu desejo de estar junto do Amado. Francisco passa a impressão de estar sempre na presença do Amado. Andarilho, peregrino, dizem as Fontes que quando percebia as visitas do Amado, não tendo onde esconder-se durante o momento desse amor, cobria o rosto com as mangas da túnica. Silêncio, contemplação, faziam parte de sua vida. Hesitou mesmo entre a vida ativa e a vida de contemplação. Esses aspectos da vida de Francisco não passam despercebidos. Sua contemplativa imersão no mistério é provocação para nós que vivemos na agitação.  Francisco, um ser arrumado por dentro.

 

  • Paralelamente olhamos para a Clara, a mística, a orante, aquela que tinha claridade no rosto quando rezava, a meditativa, mulher que escreveu cartas de imenso conteúdo amoroso a Inês de Praga numa linguagem parece com a de Teresa d’Ávila e São João da Cruz. Mulher do silêncio, da vida escondida, vida sem aparato, feita de simplicidade e de constantes visitas ao seu interior.

 

  • Tentemos, pelo momento, refletir sobre essa urgência de parar, de visitar o interior, de não deixar nosso mistério pessoal ser invadido por ilusões que não nos levam a nada. Contemplar... o que pode querer dizer contemplar?

 

  • Contemplar, deter-se, demorar o olhar sobre pessoas, paisagens, olhar a vida. Num tempo de frenesi, de corrida louca, de falta de tempo parece importante que tenhamos a coragem de prestar atenção nas coisas da vida, no fluxo nervoso e neurótico dos acontecimentos, da vida, do trabalho, dos amores e dissabores. Prestar atenção para não sermos pessoas que passam o tempo sem aproveitar o tempo, sem viver a vida. Pessoas cansadas, insatisfeitas ou tentado cobrir tantos de nossos vazios de qualquer jeito.

 

  • .. tem a ver com o olhar. Esse olhar feito da córnea, íris, pupilas é importante. Fundamental, no entanto, um detido e persistente olhar a partir do interior e vislumbrar os mistérios, as coisas, das pessoas que nos envolvem com sua presença. Contemplar tem tudo a ver com olhar detidamente.

 

  • “A contemplação começa quando aceitamos que não sabemos ver, que a nossa visão é parcial, pobre, que vemos sempre como em espelho e de maneira confusa. A contemplação não é uma sabedoria onde nos instalamos: é, antes, uma forma de exposição desarmada do olhar, uma colocação sem reservas, uma aprendizagem sempre a ser refeita, um despojamento dos porquês em face dos instantes. Este o armistício de desencadear o espanto” (José Tolentino Mendonça, Mística do Instante, p.146-147).

 

  • Contemplar tem a ver com um desejo de captar o mistério das coisas. Será preciso ter abertos os olhos do interior. “Hoje torna-se cada vez mais claro que as sociedades capitalistas, organizadas à roda do consumo, explorando avidamente as compulsões de satisfações induzidas pela publicidade, estão, na prática, removendo a sede e o desejo tipicamente humanos. O discurso capitalista promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada. Mas quando o gozo, a paixão, a alegria se esgotam no consumismo desenfreado, seja de objetos, seja das próprias pessoas chegamos à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde horizonte. Os tetos tornam-se cada vez mais baixos. Há nas nossas culturas, e nas nossas igrejas de igual modo, um déficit de desejo. Quando se adverte que estamos assistindo no presente à emergência cada vez em escala maior, de sujeitos sem desejo, isto deve nos conduzir a uma autocrítica eclesial. Nós, os batizados, formamos uma comunidade de desiderantes? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um laboratório do Espírito, onde, no provocador oráculo de Joel (3,1), os nossos filhos e filhas profetizam, os nossos anciãos têm sonhos e os nossos jovens constroem novas visões, não só religiosas, mas, igualmente novas, compreensões culturais, econômicas, científicas, sociais? ” (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede, p, 48-49).

 

  • Vida contemplativa, contemplação. Seres humanos capazes de prestar atenção na vida, nas pessoas, no que nos cerca. Seres cheios de saudade do Mistério. Contemplação, sobretudo quando se busca o Mistério, tem a ver com vida interior. A vida interior exige a ascese do tempo e do corpo, pede silêncio como dimensão na qual habitar, invoca a solidão como momento essencial de purificação, chama a oração interior para encontrar o Senhor que habita no segredo e faz do próprio coração a cela interior. Todas as orações vocais, as celebrações litúrgicas, os gestos de pastoral podem ser mero ativismo se o interior das pessoas não for habitado por uma presença.

 

  • “Preferimos muitas vezes viver fora de nós mesmos, fora do castelo interior, homens e mulheres de superfície, porque a aventura do profundo e da verdade provoca medo. Preferimos noções tranquilizadoras, mesmo se limitadas, ao desafio que nos lança para além do vislumbrado” (Contemplai, n. 39).

 

  • Como é que nos situamos diante do tempo? O tempo se vinga quando é respeitado. Normalmente falando vivemos de aceleração em aceleração. Não deixamos as coisas se acomodarem. A criança não tem tempo de ser criança. O emprego de seu tempo é todo tomado. Os jovens das classes remediadas têm todo o tempo ocupado. Os jovens das classes menos aquinhoadas estudam, trabalham, participam também de baladas, encontram companheiros e companheiros e antes que as coisas estejam mais ou menos arrumadas já entregam seus corpos. Tudo sem pensar, rapidamente. Fica-se velho antes de viver. Não temos condições de saber para onde a vida está nos levando. Não temos em mão a direção do barco da vida. Deixamos que as coisas aconteçam. 

 

  • Há uma absolutização da vida ativa. Compreendemos que é preciso agir, produzir, render, ganhar dinheiro e prestígio. Preciso será também parar, tirar os sapatos, olhar as pessoas que estão no metrô, no ônibus, os penteados novos, as pessoas dormindo nos meios de comunicação, o olhar triste do que vem marcar missa de sétimo dia, a mãe amamentando seu filho, o velho cansado, talvez até meio babado..., mas cheio de anos. Sair de nós mesmos, olhar, contemplar. Há uma desproporção entre a vida ativa e a vida contemplativa. Sofremos de um ativismo selvagem que nos impede de contemplar a realidade.

 

  • “Toda contemplação exige tempo e a velocidade é um obstáculo fundamental. A contemplação exige, ainda, uma atitude interior de paz e de profundo recolhimento, uma predisposição para receber, para deixar-se surpreender pela realidade. A contemplação não busca nada concretamente. A pessoa que a cultiva estimula sua inteligência espiritual, pois, ao contemplar a realidade, transcende à aparência das coisas, vê seu lado oculto e entra em comunhão com o mistério do ser (...). Quem contempla não tem vontade de dominar aquilo que contempla” (Francescc Torralba).

 

  • “O tempo, no comportamento cristão, não é mercadoria, mas sinal que nos revela Deus aqui e agora. São necessários espaços e tempos adequados, para lugares para habitar sem pressa de fôlego curto.

 

Sugestões práticas:

 

  • Não perder força e ânimo para agir, trabalhar e lutar. O momento atual (e todos os momentos) são momentos de sair, trabalhar, gastar a energia pelos outros. Somos operários laboriosos. Cuidado com um ativismo sem sentido.
  • Precisamos prestar atenção para não deixarmos nosso interior vazio de nós mesmos: oração bem pessoal, intimidade, meditação, leitura que nos alimenta.
  • Velho conselho sempre atual: conhece a ti mesmo.
  • As pessoas podem exagerar no fazer pensando só existir o fazer. O fazer sem alma não tem sentido.
  • Aprender a olhar os outros com empatia, com simpatia, olhar o mundo, ler no rosto o que se passa no interior das pessoas... olhar para o alto e não para baixo.
  • Prestar atenção na maneira como usamos os meios eletrônicos e como vamos nos tornando superficiais sobrepondo mensagem sobre mensagem, acumulando lixo em cima de lixo.
  • Fazer preceder nossas orações de tempos de silêncio para que o coração se aquiete e aconteça um verdadeiro encontro.
  • Praticar o exercício da meditação.
  • Buscar viver momentos de silêncio e de recolhimento para poder saborear o que anda acontecendo.

 

Anexos

 

  • Rotina

A rotina começa por ser um esforço de regularidade nos vários planos da existência, esforço que, temos de dizer, é em si positivo. A vida seria impossível se o eliminássemos de todo. As rotinas têm um efeito saudável: tornando o cotidiano de situações que podem ser aguardadas, que nos permitem habitar com confiança o tempo. Mas o que começa por ser bom esconde também um perigo. De repente, a rotina substitui-se à própria vida. Que tudo se torna óbvio e regulado, deixa de haver lugar para a surpresa. Cada dia é simplesmente igual ao anterior. A nossa viagem passa para as mãos de um piloto automático, que só tem de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente estabelecidas. Os sentidos adormecem.   Bem podem os dias ser novos a cada manhã ou o instante abrir-se como um limiar inédito que nunca os cruzaremos assim. Os nossos olhos sonolentos veem tudo como repetido.

Tolentino, A Mística do Instante, p. 17

 

  • Incapacidade de permanecer só

Com a Internet vamos nos desabituando ao não fazer nada, ao ócio. Estamos sempre em ação. William Deresiewicz, em um texto a respeito do fim da solidão, assim relata um eloquente exemplo: “Conheço uma adolescente que em um mês enviou mais de trinta mil mensagens.  Um média de cem por dia, uma mensagem cada dez minutos: pela manhã, depois do almoço, dias de semana, domingos, feriados, na escola, durante o almoço, na hora dos deveres escolares e quando escovava os dentes. Nunca ficou sozinha por mais de dez minutos. Isto quer dizer que não tem intimidade”. Nossa gente não consegue mais viver e habitar a solidão.

 

  • Somam e deixam. Uns outros não sabendo para onde a proa do barco aponta. O mundo é dado em poucas horas de avião. As coisas que acontecem na extremidade da terra agora já estão conosco em nosso quarto, na minha intimidade mais íntima. Tudo rápido, rápido demais.
  • Aceleração e atomização. Informação em cima de afirmação. Mensagens que chegam. Ligar, escutar, ler, responder e logo em seguida novas mensagens. Incessantemente. Sem desligar. Em casa, no ônibus, na missa, sempre antenados. E as mensagens falam de Bolsonaro, de novos requintes para as performances sexuais, de produtos que a ajudam a emagrecer, das novas histórias do Senhor Trump, as falas do Papa, as reuniões da fraternidade franciscana secular. Com é que vamos fazer a ligação entre o que acontece? Um frenesi. O tempo não existe... já estamos no meio do ano e ontem mal e mal colocamos no sótão as imagens do presépio. Sem uma certa ociosidade, sem tirar os sapatos e andar descalço, sem colocar o pé no freio, caminhamos para um não gostar de viver.

 

Por: Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

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