Sábado, 30 Janeiro 2016 18:33

Prólogo da Regra da OFS: Dos que não fazem penitência

 

Prólogo da Regra da OFS

II   −   DOS QUE NÃO FAZEM PENITÊNCIA  (Cap.II)

 

Oração de Abertura

Senhor  Jesus, tu és a vida

 

Senhor  Jesus  Cristo,

tu és a verdade!

Ilumina-nos, te pedimos,

com a graça de teu  Espírito, 

para que possamos crer no amor

que apareceu em ti no meio de nós

e possamos arriscar por ele a verdade da vida.

 

Tu és o caminho!

Guia-nos, te invocamos,

pelos caminhos  ao longo dos quais,

tu,  Rei Servo por amor,

nos precedeste e nos acompanhas 

na graça do Espirito

para a casa do Pai.

 

Tu és a vida!

A morte foi vencida pela tua morte.

Por tua ressurreição,

nasceu a vida nova 

do universo reconciliado com Deus.

 

Faz  com que vivamos  para ti

 morramos por ti,

ara que pela força do Espírito Santo Consolador,

possamos um dia gloriar-nos

de tua vida sem ocaso.

Amém.  Aleluia!

                        Bruno Forte

 

 

A segunda  parte da Carta  pode ser subdividida em três secções:  na  primeira parte se fala expressamente dos que  não fazem penitência, na segunda parte o autor se dirige aos maus, aos “cegos” e na terceira parte  fala do homem que morre em pecado.

             Todos aqueles e aquelas  que não vivem em espirito de penitência e não recebem o Corpo e Sangue  de Nosso Senhor Jesus Cristo, e praticam vícios e pecados, e caminham atrás da má concupiscência e dos maus desejos de sua carne e não cumprem o que prometeram ao Senhor e com seu corpo servem ao mundo, aos desejos carnais, às solicitações deste mundo e às preocupações desta vida: dominados pelo demônio, do qual são filhos e cujas obras praticam  (Jo 8,41), estão cegos porque não reconhecem a verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo. Não possuem a sabedoria espiritual porque não têm o Filho de Deus, que é a verdadeira sabedoria do Pai;  dos quais está escrito:  A sabedoria dele foi devorada (Sl 106, 27).  E malditos os que se afastam de seus mandamentos  (Sl 118,21)  (Exortação 1-9).

Características dos que não fazem penitência

 

·         Não recebem o Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, praticam vícios e pecado.  Servem ao mundo e aos desejos da carne.  Vivem o espírito do mundo, vivem “carnaliter”.  Estão fadados a morrer.  Não se pode dizer  “quão felizes” ,  mas “malditos”. Esse o  final dos quem não fazem penitência.

·         “Não cumprem o que prometeram ao Senhor”.   De que promessas se tratam?  Dos irmãos da Ordem Primeira ou já dos  Terciários do tempo? Ou simplesmente de todos os cristãos  com suas promessas batismais?

·          Falta-lhes a sabedoria. O texto fala da figura “mundo”  que se opõe aos planos de Deus. Trata-se desse mundo mau que cativa o ser humano. O homem vive então com muitas preocupações com o comer, o vestir, o aparecer, o lucrar, o cuidar dos sempre renovados desejos do ego.  

·         As pessoas que não seguem a via da penitência vão perdendo aos poucos a sabedoria de existir  que é dom do Espírito. Deixam de ter a delicadeza de ouvir a voz do Senhor, se querer saber quais os mandamentos do Senhor. E assim não conseguem ouvir  a melodia do Evangelho. Fecham-se em si mesmas.

 

 Cegueira daquele que rejeita a penitência

            Esses  perdem a alma:

                         Percebem e reconhecem, têm consciência e praticam o mal e perdem deliberadamente suas almas. Reparai, ó cegos e iludidos por vossos inimigos: pela carne, pelo mundo e pelo demônio;  porque é agradável ao corpo praticar o pecado, e amargo faze-la servir a Deus, porque todos os vícios e pecados saem do coração do homem e de lá procedem, como diz o Senhor no Evangelho (Mc 7,21) .  E nada tendes de bom neste mundo, nem no futuro. E julgais possuir por longo tempo as coisas deste mundo, mas estais enganados, porque virá o dia e a hora na qual não pensais, que desconheceis e ignorais.  O corpo adoece, a morte se avizinha e assim o homem morre de uma morte infeliz  (amarga) ( Exortação  10-14).

 

·         No mau comportamento Francisco reconhece a obra do Maligno. Os que cometem tais maldades são  filhos e prisioneiros do diabo, cujas obras realizam.

·         A raiz desta cegueira consiste no fato de não  se reconhecer  Jesus como luz verdadeira.  Não são sábios porque  não possuem o Filho de Deus, verdadeira Sabedoria do Pai.  É de se observar a segurança com que Francisco identifica  como a Sabedoria do Pai.

·         A mudança do coração é fundamental: dali  procedem vícios e pecados.  Conclusão: levar uma vida de penitência.

·         Aparece o binômio  doce-amargo.  Ao corpo é doce pecar,  mas amargo fazer a vontade de Deus.  O corpo é o eu egoísta  ao qual é doce, agradável  cometer pecado. Francisco usará esse binômio também no Testamento:  o abraço ao leproso transformará o amargo em doce.

·         Os vícios e pecados procedem do coração.  A partir do interior começa a  conversão.

 

Diante da morte: levar a sério a conversão

Tom exortativo

E onde, quando e de tal modo como venha a morrer um homem em pecado mortal, sem penitência e reparação – e ele pôde fazer penitência e não fez  - o demônio arranca-lhe a alma do corpo sob tal angústia e medo, que ninguém é capaz de  conhecer, senão aquele próprio que o experimenta.   E ser-lhes-ão  tirados todos os talentos e os poderes e a ciência e sabedoria  que julgavam possuir. E deixam os seus bens aos parentes e amigos e depois que estes se apoderam deles e os distribuíram entre si, disseram: Maldita seja a sua alma, porque  pôde ter dado e ganho mais para nós do que aquilo que conseguiu. O corpo comem-no os vermes e assim eles perderam o corpo e a alma neste mundo passageiro e irão para o inferno, onde serão atormentados para sempre ( Exortação 15-18).

 

·         A  morte do pecador é descrita com sobriedade  e sublinha-se de modo particular o apego aos bens deste mundo. Passam para os outros.  Esses outros que os recebem não mostram reconhecimento.  O que morrer podia ter levado uma vida diferente.  Agora, no momento da morte, experimenta arrependimento.  Tudo poderia ter sido diferente. Se não vos converterdes, todos vós perecereis...

·         “O ser humano no seu relacionamento com o mundo e as coisas criadas, é chamado a ser senhor e rei da criação, não para dominá-la mas para cultivá-la.  No uso dos bens, na virtude da esperança,  ele é chamado a antegozar o Bem que é Deus. Acontece que, por causa de sua fragilidade,  o ser humano tende a inverter ordem das coisas.  Em vez de usar os bens  para através deles gozar  do Bem que permanece para sempre, ele se apossa e se deixa escravizar pelos bens temporais. Ele troca os valores eternos pelos bens temporais  tanto na ordem material como na ordem espiritual. É o culto a deuses aparentes, a idolatria. Importa, pois, não se deixar enganar pela ilusão dos bens materiais e mesmo espirituais, como os talentos,  o poder, a ciência e a sabedoria. Por isso, o ser humano cultivará em sua vida uma atitude de jejum dos bens materiais. Abster-se deles, não se apossar deles, para que  não ocupem o  lugar do coração humano, impedindo seu espaço para Jesus Cristo, para Deus. É a atitude de liberdade e de respeito diante  dos bens materiais temporais”  ( Frei Alberto Beckhäuser, op. cit,. p. 64).

 Post-scriptum

             Ao conhecimento  de todos quantos  chegar esta carta, rogamos, por aquele amor que é Deus (1Jo 4,16), que recebam benignamente estas palavras odoríferas  de Nosso Senhor Jesus  Cristo.  E os que não sabem ler, façam-na ler muitas vezes; e guardem-nas na memória, pondo-as santamente em prática até o fim, pois elas são “espirito e vida” (Jo 6, 63).  E os que não fizerem terão que prestar contas no dia do juízo  (Mt 12,36)  “perante o tribunal de Nosso Senhor Jesus Cristo  (Rm 14,10) (Exortação  19-22).

 

·         Destacamos  algumas expressões e palavras caras a Francisco: fala das odoríferas  palavras de Nosso Senhor Jesus  Cristo.  Francisco está  convencido de que o que escreveu  não é doutrina sua, mas palavras do Senhor.  Belo o adjetivo odoríferas que remete para o vocabulário dos sentidos.

·         As palavras deverão ser acolhidas  benignamente e com divino amor.  Isto que dizer que não se trata apenas de um acolhimento intelectual mas feito com afeto.

·         Francisco pede que sejam guardadas na memória e recorda que são espírito e vida.

Questões para círculos

       §  O que significa não possuir a “sabedoria espiritual”?

§  Em que sentido o amargo pode transformar-se em doçura e vice-versa?

§   Quais as advertências de Francisco em vista da morte?

§  O que significa “servir as odoríferas palavras do Senhor?

 Conclusão

     Procuramos seguir, passo a passo, as orientações, proposições e advertências de Francisco  dirigidas a seus discípulos, talvez de modo mais direto aos leigos e leigas que o procuravam. Todo o texto, por vezes sereno e místico, outras vezes em tom mais grave,  é convite a que se opte pelo caminho da felicidade, ou seja,  a tentativa de mudar o coração, de  fazer com que o velho homem, dos vícios e dos pecados, não tome a dianteira  daquele que é morada do Esposo. Antes que os franciscanos seculares  penetrem  nas diretivas da Regra de Paulo VI,  essência e  súmula da Evangelho, convém  escutar o apelo do Pai  Francisco:  o alegre convite para que sejam realmente penitentes, que se insiram no cortejo desse movimento medieval cujos membros eram conhecidos como  “os penitentes de Assis”.

            Cesare Vaiani,  OFM,  examinando a  Exortação  aos irmãos e irmãs da penitência  faz algumas observações que podem servir de conclusão para nossa reflexão:

 

“A primeira redação da Carta aos Fiéis  oferece uma visão bastante significativa da experiência de Francisco  porque revela  traços de sua experiência de Deus e rasgos de sua consciência evangelizadora.

A parte consagrada a ilustrar a morada do Espírito no homem, que  faz nascer laços com o filho, esposo, irmão e mãe constitui nos Escritos de Francisco um dos textos mais densos  relativos à experiência da ação de Deus nós, com  nítida conotação trinitária.  Quando se fala de cristocentrismo trinitário, a propósito da experiência  espiritual de Francisco, necessário referir-se a este texto, que ilustra a vida cristã como  liame de intimidade com as três divinas pessoas, realizado pelo Espírito, colocando no centro o Cristo esposo, irmão, filho e como horizonte último  seu Pai e nosso Pai.  Sabemos que  Francisco quase nunca fala diretamente da sua própria experiência com Deus, de maneira autobiográfica como fazem  autores e épocas da mística cristã. É possível, no entanto,  reconhecer num texto como este  um apaixonado eco de  sua experiência pessoal.

A consciência evangelizadora de Francisco aparece menos nitidamente nesta carta do que em sua segunda redação. A última frase da carta,  por meio do convite para que os leitores  recebam benignamente as palavras odoríferas de Nosso Senhor  mostra explicitamente a vontade do anúncio que ressalta de todo o texto.  A simples estrutura bipartida do texto sugere  sua utilização em contexto de  exortação ou pregação.  Significativo que uma tal exortação, dirigida a todos os cristãos, seja um convite à comunhão  com as três pessoas divinas. Seria uma experiência reservada a poucos?  Francisco sabe  que esta última e altíssima  comunhão com Deus outra coisa não é senão  a substância da vocação cristã”  (Cesare Vaiani,  Storia e teologia dell’esperienza spirituale di Francesco d’Assisi,  Edizioni Biblioteca  Francescana, Milano,  2013, p. 268-269).

 

 PROLONGANDO A REFLEXÃO

Convite à uma vida de penitência

 

Belas e graves as admoestações desta  homilia de um autor antigo do século II. Constituem um convite a uma vida seriamente levada a partir da retidão da consciência e da acolhida da graça.  Estão na mesma linha da Exortação aos irmãos e irmãs da penitência.

 

            O Senhor usou para conosco de uma misericórdia tão grande que, primeiramente, nós, seres vivos, não sacrificássemos a deuses mortos nem os adorássemos e, levando-nos por Cristo  ao conhecimento do Pai da verdade. E qual é o conhecimento que nos conduz a ele?  Não é acaso não negar  Aquele por quem o conhecemos?  Ele mesmo declarou: Ao que der testemunho de mim, eu darei testemunho dele diante do Pai  (cf Lc 12,8).  É este o nosso prêmio: testemunhar aquele por quem fomos salvos. Como testemunharemos?  Fazendo o que diz, sem desprezar seus mandamentos, honrando-o não com os lábios só, mas de todo o coração e inteligência.  Pois  Isaías disse:  Este povo me honra com os lábios, seu coração, porém, está longe de mim (Is 29, 13).

 

            Portanto, não nos contentemos de chamá-lo de Senhor: isto não nos salvará.  São suas palavras:  Não é quem me diz Senhor, Senhor, quem se salvará, mas quem pratica a justiça  (cf Mt 7,21).  Por isso, irmãos, demos testemunho pelas obras: amemo-nos  mutuamente, não cometamos adultério, não nos difamemos uns aos outros nem nos invejemos, mas vivamos na continência, na misericórdia, na bondade. E sejamos movidos pela mútua compaixão, não pela cobiça.  Confessemo-lo por estas obras, não pelas contrárias. Não temos que temer os homens mas a Deus. Porque o Senhor disse aos que assim procediam:  Se estiverdes comigo, reunidos em meu seio e não cumprirdes os meus mandamentos, eu vos repelirei e direi: Afastai-vos, não sei de onde sois, operários da iniquidade   (cf Mt 7,23; Lc 13,27).

Liturgia das Horas  IV, p. 440-441

 

ORAÇÃO FINAL

            Absorvei, Senhor, eu vos suplico, o meu espírito, e pela suave e ardente força do vosso amor, desafeiçoai-me de todas as coisas que debaixo do céu existem, a fim de que eu possa morrer por vosso amor, ó Deus, que por meu amor vos dignastes morrer. Amém.  (São Francisco de Assis)

 

 

 

Bibliografia de apoio:

 

·       A espiritualidade do franciscano secular. Exemplo e proposta de Francisco de Assis,  Frei Alberto Beckhäuser, OFM, Vozes, 2015

·         Chemins d’interiorité avec saint  François, Michel Hubaut, OFM,  Ed. Franciscaines,  2012

·         Storia e teologia dell’esperienza spirituale di Francesco d’Assisi, Cesare Vaiani,  Edizioni Biblioteca Francescana, Milano, 2013

·         Ordem Franciscana Secular: uma forma de vida evangélica,  Vozes/CEFEPAL  1986

 

 

                                                                                              Frei Almir Guimarães

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