Prólogo da Regra da OFS
II − DOS QUE NÃO FAZEM PENITÊNCIA (Cap.II)
Oração de Abertura
Senhor Jesus Cristo,
tu és a verdade!
Ilumina-nos, te pedimos,
com a graça de teu Espírito,
para que possamos crer no amor
que apareceu em ti no meio de nós
e possamos arriscar por ele a verdade da vida.
Tu és o caminho!
Guia-nos, te invocamos,
pelos caminhos ao longo dos quais,
tu, Rei Servo por amor,
nos precedeste e nos acompanhas
na graça do Espirito
para a casa do Pai.
Tu és a vida!
A morte foi vencida pela tua morte.
Por tua ressurreição,
nasceu a vida nova
do universo reconciliado com Deus.
Faz com que vivamos para ti
morramos por ti,
ara que pela força do Espírito Santo Consolador,
possamos um dia gloriar-nos
de tua vida sem ocaso.
Amém. Aleluia!
Bruno Forte
A segunda parte da Carta pode ser subdividida em três secções: na primeira parte se fala expressamente dos que não fazem penitência, na segunda parte o autor se dirige aos maus, aos “cegos” e na terceira parte fala do homem que morre em pecado.
Todos aqueles e aquelas que não vivem em espirito de penitência e não recebem o Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e praticam vícios e pecados, e caminham atrás da má concupiscência e dos maus desejos de sua carne e não cumprem o que prometeram ao Senhor e com seu corpo servem ao mundo, aos desejos carnais, às solicitações deste mundo e às preocupações desta vida: dominados pelo demônio, do qual são filhos e cujas obras praticam (Jo 8,41), estão cegos porque não reconhecem a verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo. Não possuem a sabedoria espiritual porque não têm o Filho de Deus, que é a verdadeira sabedoria do Pai; dos quais está escrito: A sabedoria dele foi devorada (Sl 106, 27). E malditos os que se afastam de seus mandamentos (Sl 118,21) (Exortação 1-9).
Características dos que não fazem penitência
· Não recebem o Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, praticam vícios e pecado. Servem ao mundo e aos desejos da carne. Vivem o espírito do mundo, vivem “carnaliter”. Estão fadados a morrer. Não se pode dizer “quão felizes” , mas “malditos”. Esse o final dos quem não fazem penitência.
· “Não cumprem o que prometeram ao Senhor”. De que promessas se tratam? Dos irmãos da Ordem Primeira ou já dos Terciários do tempo? Ou simplesmente de todos os cristãos com suas promessas batismais?
· Falta-lhes a sabedoria. O texto fala da figura “mundo” que se opõe aos planos de Deus. Trata-se desse mundo mau que cativa o ser humano. O homem vive então com muitas preocupações com o comer, o vestir, o aparecer, o lucrar, o cuidar dos sempre renovados desejos do ego.
· As pessoas que não seguem a via da penitência vão perdendo aos poucos a sabedoria de existir que é dom do Espírito. Deixam de ter a delicadeza de ouvir a voz do Senhor, se querer saber quais os mandamentos do Senhor. E assim não conseguem ouvir a melodia do Evangelho. Fecham-se em si mesmas.
Cegueira daquele que rejeita a penitência
Esses perdem a alma:
Percebem e reconhecem, têm consciência e praticam o mal e perdem deliberadamente suas almas. Reparai, ó cegos e iludidos por vossos inimigos: pela carne, pelo mundo e pelo demônio; porque é agradável ao corpo praticar o pecado, e amargo faze-la servir a Deus, porque todos os vícios e pecados saem do coração do homem e de lá procedem, como diz o Senhor no Evangelho (Mc 7,21) . E nada tendes de bom neste mundo, nem no futuro. E julgais possuir por longo tempo as coisas deste mundo, mas estais enganados, porque virá o dia e a hora na qual não pensais, que desconheceis e ignorais. O corpo adoece, a morte se avizinha e assim o homem morre de uma morte infeliz (amarga) ( Exortação 10-14).
· No mau comportamento Francisco reconhece a obra do Maligno. Os que cometem tais maldades são filhos e prisioneiros do diabo, cujas obras realizam.
· A raiz desta cegueira consiste no fato de não se reconhecer Jesus como luz verdadeira. Não são sábios porque não possuem o Filho de Deus, verdadeira Sabedoria do Pai. É de se observar a segurança com que Francisco identifica como a Sabedoria do Pai.
· A mudança do coração é fundamental: dali procedem vícios e pecados. Conclusão: levar uma vida de penitência.
· Aparece o binômio doce-amargo. Ao corpo é doce pecar, mas amargo fazer a vontade de Deus. O corpo é o eu egoísta ao qual é doce, agradável cometer pecado. Francisco usará esse binômio também no Testamento: o abraço ao leproso transformará o amargo em doce.
· Os vícios e pecados procedem do coração. A partir do interior começa a conversão.
Diante da morte: levar a sério a conversão
Tom exortativo
E onde, quando e de tal modo como venha a morrer um homem em pecado mortal, sem penitência e reparação – e ele pôde fazer penitência e não fez - o demônio arranca-lhe a alma do corpo sob tal angústia e medo, que ninguém é capaz de conhecer, senão aquele próprio que o experimenta. E ser-lhes-ão tirados todos os talentos e os poderes e a ciência e sabedoria que julgavam possuir. E deixam os seus bens aos parentes e amigos e depois que estes se apoderam deles e os distribuíram entre si, disseram: Maldita seja a sua alma, porque pôde ter dado e ganho mais para nós do que aquilo que conseguiu. O corpo comem-no os vermes e assim eles perderam o corpo e a alma neste mundo passageiro e irão para o inferno, onde serão atormentados para sempre ( Exortação 15-18).
· A morte do pecador é descrita com sobriedade e sublinha-se de modo particular o apego aos bens deste mundo. Passam para os outros. Esses outros que os recebem não mostram reconhecimento. O que morrer podia ter levado uma vida diferente. Agora, no momento da morte, experimenta arrependimento. Tudo poderia ter sido diferente. Se não vos converterdes, todos vós perecereis...
· “O ser humano no seu relacionamento com o mundo e as coisas criadas, é chamado a ser senhor e rei da criação, não para dominá-la mas para cultivá-la. No uso dos bens, na virtude da esperança, ele é chamado a antegozar o Bem que é Deus. Acontece que, por causa de sua fragilidade, o ser humano tende a inverter ordem das coisas. Em vez de usar os bens para através deles gozar do Bem que permanece para sempre, ele se apossa e se deixa escravizar pelos bens temporais. Ele troca os valores eternos pelos bens temporais tanto na ordem material como na ordem espiritual. É o culto a deuses aparentes, a idolatria. Importa, pois, não se deixar enganar pela ilusão dos bens materiais e mesmo espirituais, como os talentos, o poder, a ciência e a sabedoria. Por isso, o ser humano cultivará em sua vida uma atitude de jejum dos bens materiais. Abster-se deles, não se apossar deles, para que não ocupem o lugar do coração humano, impedindo seu espaço para Jesus Cristo, para Deus. É a atitude de liberdade e de respeito diante dos bens materiais temporais” ( Frei Alberto Beckhäuser, op. cit,. p. 64).
Post-scriptum
Ao conhecimento de todos quantos chegar esta carta, rogamos, por aquele amor que é Deus (1Jo 4,16), que recebam benignamente estas palavras odoríferas de Nosso Senhor Jesus Cristo. E os que não sabem ler, façam-na ler muitas vezes; e guardem-nas na memória, pondo-as santamente em prática até o fim, pois elas são “espirito e vida” (Jo 6, 63). E os que não fizerem terão que prestar contas no dia do juízo (Mt 12,36) “perante o tribunal de Nosso Senhor Jesus Cristo (Rm 14,10) (Exortação 19-22).
· Destacamos algumas expressões e palavras caras a Francisco: fala das odoríferas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo. Francisco está convencido de que o que escreveu não é doutrina sua, mas palavras do Senhor. Belo o adjetivo odoríferas que remete para o vocabulário dos sentidos.
· As palavras deverão ser acolhidas benignamente e com divino amor. Isto que dizer que não se trata apenas de um acolhimento intelectual mas feito com afeto.
· Francisco pede que sejam guardadas na memória e recorda que são espírito e vida.
Questões para círculos
§ O que significa não possuir a “sabedoria espiritual”?
§ Em que sentido o amargo pode transformar-se em doçura e vice-versa?
§ Quais as advertências de Francisco em vista da morte?
§ O que significa “servir as odoríferas palavras do Senhor?
Conclusão
Procuramos seguir, passo a passo, as orientações, proposições e advertências de Francisco dirigidas a seus discípulos, talvez de modo mais direto aos leigos e leigas que o procuravam. Todo o texto, por vezes sereno e místico, outras vezes em tom mais grave, é convite a que se opte pelo caminho da felicidade, ou seja, a tentativa de mudar o coração, de fazer com que o velho homem, dos vícios e dos pecados, não tome a dianteira daquele que é morada do Esposo. Antes que os franciscanos seculares penetrem nas diretivas da Regra de Paulo VI, essência e súmula da Evangelho, convém escutar o apelo do Pai Francisco: o alegre convite para que sejam realmente penitentes, que se insiram no cortejo desse movimento medieval cujos membros eram conhecidos como “os penitentes de Assis”.
Cesare Vaiani, OFM, examinando a Exortação aos irmãos e irmãs da penitência faz algumas observações que podem servir de conclusão para nossa reflexão:
“A primeira redação da Carta aos Fiéis oferece uma visão bastante significativa da experiência de Francisco porque revela traços de sua experiência de Deus e rasgos de sua consciência evangelizadora.
A parte consagrada a ilustrar a morada do Espírito no homem, que faz nascer laços com o filho, esposo, irmão e mãe constitui nos Escritos de Francisco um dos textos mais densos relativos à experiência da ação de Deus nós, com nítida conotação trinitária. Quando se fala de cristocentrismo trinitário, a propósito da experiência espiritual de Francisco, necessário referir-se a este texto, que ilustra a vida cristã como liame de intimidade com as três divinas pessoas, realizado pelo Espírito, colocando no centro o Cristo esposo, irmão, filho e como horizonte último seu Pai e nosso Pai. Sabemos que Francisco quase nunca fala diretamente da sua própria experiência com Deus, de maneira autobiográfica como fazem autores e épocas da mística cristã. É possível, no entanto, reconhecer num texto como este um apaixonado eco de sua experiência pessoal.
A consciência evangelizadora de Francisco aparece menos nitidamente nesta carta do que em sua segunda redação. A última frase da carta, por meio do convite para que os leitores recebam benignamente as palavras odoríferas de Nosso Senhor mostra explicitamente a vontade do anúncio que ressalta de todo o texto. A simples estrutura bipartida do texto sugere sua utilização em contexto de exortação ou pregação. Significativo que uma tal exortação, dirigida a todos os cristãos, seja um convite à comunhão com as três pessoas divinas. Seria uma experiência reservada a poucos? Francisco sabe que esta última e altíssima comunhão com Deus outra coisa não é senão a substância da vocação cristã” (Cesare Vaiani, Storia e teologia dell’esperienza spirituale di Francesco d’Assisi, Edizioni Biblioteca Francescana, Milano, 2013, p. 268-269).
PROLONGANDO A REFLEXÃO
Convite à uma vida de penitência
Belas e graves as admoestações desta homilia de um autor antigo do século II. Constituem um convite a uma vida seriamente levada a partir da retidão da consciência e da acolhida da graça. Estão na mesma linha da Exortação aos irmãos e irmãs da penitência.
O Senhor usou para conosco de uma misericórdia tão grande que, primeiramente, nós, seres vivos, não sacrificássemos a deuses mortos nem os adorássemos e, levando-nos por Cristo ao conhecimento do Pai da verdade. E qual é o conhecimento que nos conduz a ele? Não é acaso não negar Aquele por quem o conhecemos? Ele mesmo declarou: Ao que der testemunho de mim, eu darei testemunho dele diante do Pai (cf Lc 12,8). É este o nosso prêmio: testemunhar aquele por quem fomos salvos. Como testemunharemos? Fazendo o que diz, sem desprezar seus mandamentos, honrando-o não com os lábios só, mas de todo o coração e inteligência. Pois Isaías disse: Este povo me honra com os lábios, seu coração, porém, está longe de mim (Is 29, 13).
Portanto, não nos contentemos de chamá-lo de Senhor: isto não nos salvará. São suas palavras: Não é quem me diz Senhor, Senhor, quem se salvará, mas quem pratica a justiça (cf Mt 7,21). Por isso, irmãos, demos testemunho pelas obras: amemo-nos mutuamente, não cometamos adultério, não nos difamemos uns aos outros nem nos invejemos, mas vivamos na continência, na misericórdia, na bondade. E sejamos movidos pela mútua compaixão, não pela cobiça. Confessemo-lo por estas obras, não pelas contrárias. Não temos que temer os homens mas a Deus. Porque o Senhor disse aos que assim procediam: Se estiverdes comigo, reunidos em meu seio e não cumprirdes os meus mandamentos, eu vos repelirei e direi: Afastai-vos, não sei de onde sois, operários da iniquidade (cf Mt 7,23; Lc 13,27).
Liturgia das Horas IV, p. 440-441
ORAÇÃO FINAL
Absorvei, Senhor, eu vos suplico, o meu espírito, e pela suave e ardente força do vosso amor, desafeiçoai-me de todas as coisas que debaixo do céu existem, a fim de que eu possa morrer por vosso amor, ó Deus, que por meu amor vos dignastes morrer. Amém. (São Francisco de Assis)
Bibliografia de apoio:
· A espiritualidade do franciscano secular. Exemplo e proposta de Francisco de Assis, Frei Alberto Beckhäuser, OFM, Vozes, 2015
· Chemins d’interiorité avec saint François, Michel Hubaut, OFM, Ed. Franciscaines, 2012
· Storia e teologia dell’esperienza spirituale di Francesco d’Assisi, Cesare Vaiani, Edizioni Biblioteca Francescana, Milano, 2013
· Ordem Franciscana Secular: uma forma de vida evangélica, Vozes/CEFEPAL 1986
Frei Almir Guimarães