Cuidem os irmãos, onde quer que estejam,
Nos eremitérios ou em outros lugares,
De não se apropriarem de qualquer lugar,
Nem disputá-lo a outrem.
E todo aquele que deles se acercar,
Seja amigo ou adversário, ladrão ou bandido,
Recebam-no com bondade.
Regra Não-Bulada VII, 12-13
Apesar das deficiências com que se levou a cabo, nos seguintes oito séculos, o ministério de construir a paz – reconhecendo a presença primordial da paz de Deus no interior e cultivando-a com a oração e a ação -, perdurou como uma dimensão central da espiritualidade franciscana. Como vemos nas narrações incluídas neste texto, Francisco aconselha vigorosamente a paz entre as cidades-estado que se encontram em guerra e entre cristãos e muçulmanos.
Seu empenho por encarnar a construção da paz e a intervenção não-violenta se refletem de maneira exemplar na história do lobo de Gubbio, em que Francisco conseguiu um acordo entre uma cidade italiana e um lobo, mediante a satisfação das necessidades de ambas as partes. Este empenho ficou demonstrado de forma muito mais precisa na visita que fez a Malik-al-Kamil, o sultão do Egito. Durante a quinta cruzada no ano 1219, “no meio da guerra, Francisco foi ante o inimigo desarmado, e amou-o como a um irmão”. Francisco quis encarnar as palavras de Jesus de “amar o inimigo” e enfrentar o inimigo interno (3).
São Francisco e Santa Clara de Assis cumprimentavam as pessoas de sua época com a expressão Pace e Bene!, ou seja, “Paz e Bem!”. Esta pequena frase exprime muito: que gozes de boa saúde, que estejas tranqüilo e feliz, que não sofras necessidades, que seja respeitada tua dignidade, que tua bondade interior floresça, que o mundo em que vivemos conheça esta profunda paz. Era uma bênção, uma esperança e uma forma de reconhecer a santidade daqueles com quem se encontravam.
A primeira regra da Terceira Ordem exortava os irmãos e irmãs a “não portar armas por motivo algum”. O movimento franciscano difundiu-se tanto que há indícios de que em algumas regiões da Europa, durante a Idade Média, as guerras foram obstaculizadas, porque muitos soldados potenciais se tinham tornado franciscanos, e seus votos impediam-nos de participar em conflitos armados.
Inclusive uma leitura rápida dos escritos de Francisco que chegaram até nós revela sua preocupação e o seu interesse pelo espírito e a prática da não-violência, ao encorajar seus irmãos a seguirem o chamado de Jesus a amar os seus inimigos e fazer o bem àqueles que parecessem ser adversários; ir entre as pessoas como Jesus ensinou aos seus discípulos, com simplicidade, como construtores da paz, sem pedir nada para si mesmos, porém partilhando com todos.
Como nós, Francisco viveu numa era marcada pela violência. Sua derrota, encarceramento e doença em Perúgia sugerem que sofreu o que agora denominamos transtorno por estresse pós-traumático. Ao sair desse profundo encontro com a violência e a crise que esta lhe provocou, Francisco se converteu numa pessoa de paz, que cumprimentava a todos dizendo Pace e Bene. A construção da paz, para Francisco, estava enraizada em três convicções baseadas no Evangelho:
1. Deus é todo bem, e todo bem provêm de Deus
Para Francisco, Deus é a fonte de todo bem, o Deus do amor incondicional. A não-violência criativa, abundante e completa é outra forma de expressar esse amor incondicional. Francisco desejou viver de tal maneira que essa bondade e compaixão divinas se manifestassem plenamente nele, nos outros e em toda a criação. Essa bondade e compaixão divinas são a fonte da verdadeira paz.
2. O caminho do Evangelho é um caminho de amor ativo
Amar os nossos inimigos, oferecer a outra face, alimentar o faminto, entregar a própria vida não são, para Francisco, formas de passividade e resignação, mais afirmações ativas e exemplos do Reino de Deus que Jesus anunciou. Ao advertir que “todos os que empunham a espada vão perecer pela espada” (Mt 26, 52), Jesus repreende os discípulos que solicitam permissão para pedir que caia fogo do céu sobre os samaritanos não hospitaleiros (Lc 9, 51-56). Esse fato nos é familiar, quando escutamos os relatos dos bombardeios realizados nas guerras contemporâneas em quase todos os continentes. Jesus insiste numa transformação baseada na compaixão, ajudando-nos uns aos outros, amando os nossos inimigos, compartilhando nossos bens com os demais. Pois ele próprio pediu o perdão para aqueles que o matavam, porque “não sabem o que fazem” (Lc 34, 24).
3. A pobreza voluntária serve e sustenta a verdadeira paz
Muitas vezes a riqueza está arraigada na injustiça e na exploração da humanidade e da terra. Ao mesmo tempo, quando essa riqueza se acumula, existe o problema de sua defesa. Em outras palavras, a riqueza é produto da desigualdade, e a causa dessa desigualdade provoca uma postura defensiva, uma complacência em ir à guerra para defendê-la. Se não temos nada, não há nada que defender, porém, se temos coisas, é para compartilhá-las, não para acumulá-las. Estudos arqueológicos no Oriente Médio revelam que, quando as casas eram basicamente do mesmo tamanho, prevalecia a paz, mas, quando começou a haver diferença no tamanho das casas, as evidências nos falam de conflitos sociais e de guerras. O caminho da não-violência não é só uma forma de responder a formas especificas de violência, mas também um jeito de vida holístico que é, na realidade, uma busca espiritual que determina a maneira como respondemos a Deus, a nosso próximo, a nós mesmos e ainda a toda a criação.
Disponível em: http://www.franciscanos.org.br/?p=4676