ESPELHO DE PERFEIÇÃO
PRIMEIRA PARTE
Da Perfeita Pobreza
CAPÍTULO II
Como S. Francisco declarou a sua vontade e intenção sobre a observância da pobreza e como as manteve desde o princípio até ao fim
1 Fr. Ricério da Marca, nobre pelo nascimento mas mais ainda pela santidade, visitou, um dia, no palácio do Bispo de Assis, a S. Francisco, que por ele nutria singular afeição. No decorrer da conversa que teve com ele acerca do estado da Ordem e da observância da Regra, fez-lhe a pergunta seguinte: 2 «Diz-me, Pai, quais foram as tuas intenções, quando começaste a juntar frades; as intenções que tens hoje e que julgas manter até ao dia da tua morte. 3 Pois desejava certificar-me da tua primeira intenção e vontade, assim como da última. Quero que me declares se nós, os frades clérigos, que possuímos tantos livros, podemos tê-los conosco, embora digamos que pertencem à Ordem». 4 Respondeu-lhe S. Francisco: «Quero dizer-te, irmão, que esta foi e é a minha primeira e última intenção e vontade: se os frades me tivessem acreditado, nenhum devia ter consigo mais do que o hábito, tal como vem na Regra, com o cordão e os panos menores». 5 Mas, se algum frade objectar por que razão o bem-aventurado Francisco não mandou a seu tempo observar a estreita pobreza aos frades, nem teve qualquer empenho especial em que fosse observada da maneira que disse a Fr. Ricério, 6 nós que vivemos com ele, responderemos o que ouvimos da sua própria boca, porque ele declarou aos seus frades estas e muitas outras coisas. 7 Além disso, mandou exarar na Regra muitas prescrições que ele, no interesse da Ordem, tinha solicitado ao Senhor durante as suas orações e meditações. Afirmava que eram absolutamente conformes à vontade do Senhor. 8 Mas, depois de as ter dado a conhecer aos frades, estes encontraram-nas duras e impossíveis de suportar, não sendo então capazes de prever o que iria acontecer à Ordem depois da morte do Santo Pai. 9 Porque muito se receava do escândalo em si e nos outros, S. Francisco não queria embrulhar-se em discussões com os frades, mas condescendia, contrariado, com a vontade deles, desculpando-se depois perante o Senhor. 10 Mas, para que a palavra que o Senhor tinha depositado em seus lábios, para utilidade dos frades, não resultasse fruste, quis cumpri-la em si mesmo para obter do Senhor a prometida recompensa. Assim, finalmente, encontrou sossego e consolação para o seu espírito.
REFLEXÃO
Vamos tratar neste texto da primeira parte do Espelho da Perfeição, que vem logo após o Prólogo e tem como título “Da Perfeita Pobreza”. Este trecho inicia com o segundo capítulo que foi intitulado: “Como S. Francisco declarou a sua vontade e intenção sobre a observância da pobreza e como as manteve desde o princípio até ao fim”.
Neste, o Santo travou um diálogo com Frei Ricério de Marca, que fazia parte do grupo de clérigos letrados. Na verdade, o religioso foi discutir sobre a questão da posse de livros entre os frades. O texto deixa claro que os livros oficialmente pertenciam à Ordem, ou seja, ao coletivo, mas, na prática, eram uma propriedade velada dos indivíduos pertencentes à instituição franciscana. O que vemos é que há um embate sobre a questão da posse de bens. Para entendermos isso, temos que saber atentar para o fato de que os livros, que hoje já são caros, possuíam um valor ainda mais elevado no período em que a Ordem dos Frades Menores estava se construindo. Era um produto que agregava um grande valor monetário devido ao processo custoso de produção. Quem os possuía fazia parte do grupo que dominava a sociedade, ou seja, tinha um elevado status social.
Como no Prólogo do Espelho da Perfeição, vamos ver o fundador optar pela total ausência de posses. O autor do texto narra que, por Francisco, os únicos bens dos frades, deveriam ser o hábito, o cordão e os panos menores. Aqueles que aderiram ao projeto franciscano posteriormente não conseguiam abraçar de forma completa o ideário. Tinham dificuldade em entender o que Francisco colocou desde o início de sua conversão.
O autor então conclama a outros irmãos que, assim como ele, vivenciaram os primórdios da criação de tal estilo de vida a tornarem-se testemunhas do desejo de Francisco. Esta fala nos faz retornar a frase de Santa Clara, “não perca de vista o ponto de partida”. Informa-nos que aqueles que viveram próximos ao Irmão de Assis, tornaram-se, na visão de quem faz o relato, as testemunhas fidedignas dos desejos dele. O texto quer nos levar a pensar sobre isso. Se alguém inventar alguma moda nova, estes frades serão uma forma de pedra de tropeço.
Assim como no Prólogo, há um retorno, em uma linguagem menos sobrenatural, à presença do Cristo nas decisões tomadas pelo Poverello. Desta forma, as ideias oriundas dos pedidos feitos ao Senhor, durante suas orações e meditações, são incontestáveis. Mesmo assim, como denuncia o escrito, isso não foi suficiente para que os irmãos aceitassem seguir a trilha do caminho espiritual franciscano.
Sem dúvida, esta discussão permeou e ainda permeia a vida franciscana. Porém, naquele momento foi responsável por muitas divisões. Francisco, como um amante da fraternidade, aceitou a vontade da maioria apoiada pela Igreja. Mesmo sofrendo, preferiu manter os irmãos unidos. Porém, após sua morte isso foi impossível.
Isto tem que servir para nossa vida fraterna. Lembrar que nem todos estarão em condições de abraçar a radicalidade. Mas, também não se pode possibilitar o afrouxamento da vivência do carisma por preguiça e desleixo de muitos. O bom senso deve prevalecer. Para isso, o período de formação é essencial. Devemos expor todas as diretrizes e necessidades da vida fraterna francisclariana.
Se ideias “revolucionárias” nos distanciarem da originalidade da vivência do Evangelho, proposto para nós, devemos ser firmes em nossos posicionamentos.
Outro ponto importante do texto é a experiência pessoal. Francisco resolveu viver o que propunha de forma individual. Isso é um ponto fundamental, Devemos viver as propostas franciscanas individualmente. Aí, como o rio que corre para o mar, passaremos a impregnar a fraternidade com a vivência do ideal.
Agora, se nós achamos linda a forma de outras experiências religiosas viverem o sagrado, devemos tomar cuidado em não abafar a forma franciscana em prol das novidades. Uma fé baseada na individualidade e prosperidade é totalmente contra o ideal de pobreza proposto por Francisco e seus primeiros frades para os grupos de penitentes que formaram a Ordem Terceira de São Francisco.
Nossa regra afirma que “Cristo, confiado no Pai, embora apreciasse atenta e amorosamente as realidades criadas, escolheu para si e para sua mãe uma vida humilde. Assim os franciscanos seculares procurem, no desapego, um justo relacionamento com os bens temporais, simplificando suas próprias exigências materiais. Estejam conscientes de que, segundo o Evangelho, são administradores dos bens recebidos, em favor dos filhos de Deus” (n.11).
Este é o caminho. Se temos que usar os bens, temos que ter desapego. Nada é nosso! Só o essencial, ou seja, a túnica, o cordão e os panos menores. Ter o mínimo é o necessário. Para que termos cinco propriedades? Para que termos uma biblioteca inteira com centenas de livros? Para que termos 40 pares de sapatos? Será que preciso usar aparelhos eletrônicos caríssimos? O que realmente é necessário para uma vida franciscana?
Não podemos ser o frade que, em nome de uma necessidade, que julgamos maior, deixa de lado o que é essencial ao nosso modo de vida.
Questionamentos:
Como é sua relação com os bens materiais? Poderíamos dizer que vive franciscanamente esta relação?
Com sua fraternidade vive a relação com os bens materiais? Tem algo que achamos que precisa mudar?
Que contribuição a formação com os escritos e a Regra e Vida, a partir do tema proposto, pode trazer para a nossa família, a Igreja e a sociedade como um todo?
Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)