Frei Oton da Silva Araújo Júnior, ofm
A espiritualidade franciscana conservou a data de 02 de agosto como uma singela e importante ocasião na vida de Francisco. A narrativa nos diz de uma visão mística que Francisco tivera durante um momento de oração. Em diálogo com Cristo, Francisco Lhe pediu que todas as pessoas que acorressem devotamente à igrejinha da Porciúncula recebessem o perdão de Deus. A resposta que recebeu foi: “Ó Irmão Francisco, aquilo que pedes é grande, de coisas maiores és digno e coisas maiores tereis: acolho portanto o teu pedido, mas com a condição de que tu peças esta indulgência, da parte minha, ao meu Vigário na terra (Papa)”. Após certa negociação com o Pontífice, esse lhe concedeu a indulgência a fim de “levar todos ao Paraíso”.
Nessa ocasião, reflitamos sobre esses dois elementos vinculados a essa devoção: a Porciúncula e o perdão.
A Porciúncula: quando a Igreja abraça o carisma
“Terminada, afinal, essa igreja, chegou ao lugar que se chama Porciúncula, no qual houvera uma igreja da Bem-aventurada Virgem Mãe de Deus, fabricada antigamente, mas agora abandonada e sem ninguém que dela cuidasse. (...) Quando percebeu que, de acordo com o nome da igreja, que desde antigamente se chamava Santa Maria dos Anjos, eram frequentes aí as visitas dos anjos, firmou aí seu pé, pela reverência aos anjos e principalmente pelo amor à Mãe de Cristo. O homem santo amou este lugar mais do que todos os outros do mundo, pois aí começou humildemente, aí cresceu virtuosamente, e aí terminou felizmente, recomendando-o aos frades, quando morreu, como o lugar mais querido pela Virgem” (Legenda Maior de Boaventura, II, 8).
Na parte baixa de Assis está a grande Basílica de Santa Maria dos Anjos, como que a proteger uma pérola pequenina: a igrejinha da Porciúncula, restaurada por Francisco. É impossível pisar ali sem se emocionar. O contraste é explícito, entre a pequena intuição daquele jovem sonhador, sem clareza de seus sonhos, e a grandiosidade que os abraça. Talvez a arquitetura tenha conseguido traduzir na prática aquilo que a história franciscana nos conta: que o ideal daquele jovem em processo de conversão, que acolheu seguidores, que recebeu Clara como primeira mulher, que enviou a partir dali os frades para as primeiras missões, que celebrou ali os primeiros capítulos da Ordem, e que ali viria a morrer em 1226, fosse de fato reconhecido e carinhosamente acolhido pela Igreja Universal.
Como não lembrar das peripécias de Francisco ao se dirigir a Roma com seu primeiro grupo de doze frades e as dificuldades para se encontrar com o Papa. Como convencer a Cúria? Como não ser confundido com tantos outros movimentos, por vezes, contrários à Igreja? Pois ali está: para chegar à Porciúncula é preciso reconhecer que ela está dentro de algo que a envolve, neste caso, a Basílica de Santa Maria dos Anjos, cuja construção se deu poucos anos após o Concílio de Trento, no século XVI, pelo Papa Pio V (que ficou conhecido pelo rito da missa em latim). E o contrário é verdadeiro: só existe a grandiosidade da basílica em função da intuição genuína e frágil do rapaz que até bem pouco tempo desejava ser herói de guerra, mas que agora cismava de reconstruir igrejas.
Francisco, o Papa, não cessa de fazer referência a Francisco, o santo. Em sua encíclica sobre o Cuidado da Casa Comum, para justificar a escolha desse nome para seu pontificado, diz que o jovem de Assis “era um místico e um peregrino” (Laudato Si, n. 10). Um peregrino que não simplesmente troca passos, mas caminha e inspira o caminhar de tantos homens e mulheres mundo afora. Não foi um místico estático, enredado numa cela, mas cujo ‘convento era o mundo’.
O mesmo Papa ao dizer da nova evangelização insiste: “Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás” (Evangelii Gaudium, n. 223). Se lermos essa provocação tendo em vista o ideal do jovem Francisco, reconhecemos nele um grande iniciador de processos que, afinal, ainda não terminaram, e continua restaurando a Igreja, e faz da Porciúncula um santuário, não um museu. Ali se revivem os sonhos, e esses se espalharam até os confins da terra, e venceram o tempo para chegar a nós. Queira a Deus que não tenham em nós um porto de chegada, mas que sigam adiante.
A Porciúncula indica o início de um processo, mais que a posse de um espaço, afinal, posse era algo que causava gastura a Francisco. Os projetos podem e devem começar pequenos, mas com a tenacidade propulsora de seguir adiante. Ao mesmo tempo, a Porciúncula marca o tempo em que tudo era pequeno, mais simples, mais direto. Depois, a Ordem vai crescer, com as vantagens e desvantagens desse movimento. Como na experiência bíblica que volta e meia tinha de forçar a memória a se recordar que “foste escravo no Egito” (Dt 5,15), a Porciúncula nos recorda: lembra-te, tudo começou com um pequeno lampejo, uma entrega quase pueril nas mãos de Deus, quando restaurar a Igreja significava simplesmente colocar uma pedra sobre a outra!
Porciúncula é o sacramento de um sonho, a sede (= do verbo sediar) afetiva de um grupo que nada mais queria do que viver o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O perdão como ponte para o futuro
Em 1956, Guimarães Rosa publicou seu mais famoso livro: Grande Sertão: Veredas. Na tropa rival a de Riobaldo se arvorava Zé Bebelo, que ao ser pego pelo bando oposto passa por um julgamento que reuniu também outros bandos, visto que todos traziam a tiracolo uma desavença com o réu. Porém, contra a tendência de condenar logo Zé Bebelo, Riobaldo se expressou assim:
“Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Eh, bê. Mas, para o escriturado da vida, o julgar não se dispensa; carece? Só que uns peixes tem, que nadam rio-arriba, da barra às cabeceiras. Lei é lei? Loas! Quem julga, já morreu. Viver é muito perigoso, mesmo” (p. 376).
“Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado”. Se o julgamento tem a ver com o passado, o perdão nos liga ao futuro. Perdoar alguém, dessa forma, será ponderar sobre as possibilidades de seguir em frente, juntos, apesar do acontecido (“Depois disso que passamos, podemos seguir em frente, juntos?”).
O perdão não tem a ver com esquecimento (cf. Fratelli Tutti, n. 250): na parábola do Filho Pródigo (Lc 15), certamente o pai nunca se esqueceu daquele triste dia em que o filho se fora, nem da festa que deu quando voltou. Mas a ferida não sangra mais. Em termos sociais, o Papa Francisco nos alerta de que os crimes do passado não devem ser esquecidos. Seria uma injustiça histórica pensarmos que para seguir em frente e superarmos a questão deveríamos fingir que nada aconteceu. “Não podemos permitir que a atual e as novas gerações percam a memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais justo e fraterno” – diz o Papa. E continua: tais eventos “devem ser recordados sempre, repetidamente, sem nos cansarmos nem anestesiarmos” (Fratelli Tutti, n. 248).
Muitos dizem que o perdão começa com um auto-perdão. Antes de tudo, perdoar-se, não se culpar pelo passado, mas dar a si mesmo (a) uma segunda chance. A partir daí, ser capaz de entender a outra pessoa. Dessa forma, o perdão é também uma via de mão dupla, envolvendo o conceder e o pedir. Afinal, é mais difícil perdoar ou pedir perdão? Certamente, a humildade será um tempero fundamental nesse processo, pois tenho de reconhecer meu erro, admitir minha falha, descer do pedestal. Ao mesmo tempo em que admito não ser perfeito, dou esse crédito também à outra pessoa: “não sou perfeito e permito que você também não seja”.
Mas não nos apressemos. As questões precisam ser suficientemente discernidas, mastigadas. O ódio deverá se arrefecer, o desejo de vingança deve ficar sempre mais brando. Papa Francisco reflete assim: “É importante a capacidade de expressar aquilo que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem e um modo de falar que possam ser mais facilmente aceites ou tolerados pelo outro, embora o conteúdo seja exigente; expor as próprias críticas, mas sem descarregar a ira como uma forma de vingança, e evitar uma linguagem moralizante que procure apenas agredir, ironizar, culpabilizar, ferir. Há tantas discussões (...) que não são por questões muito graves; às vezes trata-se de pequenas coisas, pouco relevantes, mas o que altera os ânimos é o modo de as dizer ou a atitude que se assume no diálogo” (Amoris Laetitia, n. 139).
O perdão alivia o fardo da vida e a impulsiona ao futuro. Como a desatar o nó que prendia, a atitude de Jesus é uma ordem de caminho: “vá”, como a dizer: “prossiga, para frente, não pare”. E conclui: “Não peques mais” (Jo 8,11), talvez numa visão utópica e inocente de que isso fosse possível, mas que convida a não se enlamaçar na mesma poça outra vez.
O perdão para Francisco
Por fim, voltemos a Francisco, o santo. Como descrever a sensação de ter sido perdoado, ter sido acolhido por Deus, recebido a chancela de estar no caminho certo...? O episódio do Perdão de Assis é datado em 1216, mesmo ano em que Clara obteve o Privilégio da pobreza. No ano seguinte, Francisco vai dividir a Ordem em Províncias; em 1219 abrem-se as grandes missões na Alemanha, França, Hungria, Espanha e Marrocos. Neste mesmo ano, Francisco irá se encontrar com o sultão, no Egito. Em 1221 ocorrerá o Capítulo das Esteiras. O que tudo isso parece indicar? Que a experiência do perdão, para Francisco, foi algo decisivo para poder implementar ainda mais os rumos da Ordem dos Menores. Como se a reconciliação consigo e com Deus o animasse de tal forma que ele passa a abraçar um projeto de fato grande. Desatados os nós, era hora de plenificar a vida, eis a força que tem o perdão!
A Porciúncula como sacramento do perdão nos faz recordar nossos inícios, nos alerta a não perdermos o primeiro amor, como nos recorda o Apocalipse (2,4), ou o ponto de partida, como alertava Clara. Reconciliados com Deus, nada mais nos amarra, “quem será contra nós?” (Rm 8,31), no dizer de Paulo. Empreendamos projetos grandes, sonhos grandes, na certeza de que “o Senhor ergue do pó o homem fraco, e do lixo ele retira o indigente, para fazê-los assentar-se com os nobres num lugar de muita honra e distinção” (1Sm 2,8).
Para o sucessor de Pedro, “o perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança” (Misericordiae Vultus, 2015).
Celebrar o Perdão de Assis nos liga a um passado pequenino, intuitivo, inspirador e nos lança para o futuro, quando Deus nos revela “a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para vida do mundo” (Optatam Totius, n. 16).