Celebrar São Francisco nunca é uma data qualquer, afinal, as efemérides da fé nos ligam às pessoas, lugares e ocasiões, num tempo em que tudo parecia mais simples, as pessoas, mais abertas, a vida mais intensa em suas relações.
O atual pontífice fez de Francisco o seu projeto. Quem imaginaria que um Francisco se sentaria no trono de Pedro, ele, que um dia fora espojar-se com os porcos, por ocasião da aprovação de sua regra, justamente após o encontro com a Cúria Romana!?
Talvez uma das definições mais completas do Santo de Assis tenha sido feita pelo papa argentino: “Francisco era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (Laudato Si, n. 10).
Corremos o risco de fixar Francisco no passado, podemos romantizá-lo a acariciar coelhinhos e borboletas, numa vida ingênua e irresponsável: acaso, não sabia ele das corrupções da Igreja de seu tempo, dos grandes jogos de poder entre religião e ambiente civil? Acreditou mesmo que seria capaz de interromper uma Cruzada? Ele achava mesmo que a Ordem não debandaria com adaptações, e ninguém mais viveria tal como ele viveu? Não saberemos ao certo.
João Paulo II em visita ao santuário de Laverna cunhou a conhecida frase: “Francisco, o mundo tem saudade de ti”. Sim, continuamos saudosos, e assim como os familiares que voltam do sepultamento de seu ente querido, não podemos permanecer no luto paralisante. Como as pessoas importantes que morrem, Francisco nos deixou um testamento.
A cena da noite de abertura de um testamento já foi muito explorada pelo cinema, inspirada em romances do tipo Agatha Christie: os parentes longínquos se reúnem, tratam-se fingidamente com familiaridade. No dia seguinte, viria o advogado fazer a leitura. Naquela noite, uma série de assassinatos seriam cometidos e, como clichê final, a culpa era do mordomo.
Francisco nos deixou um testamento, não de bens, é claro, afinal, a pobreza foi uma de suas marcas mais fortes. Seu testamento, assim como o de Clara anos depois: não deixam coisas, mas a própria vida. Fazem uma recordação de como tudo começou, relembra seus encontros, seus arroubos iniciais de conversão e de seu grupo em formação.
Testamento tem a ver com herança e, nesse caso, não nos contentamos em uma herança plural (o que Francisco deixou para nós). De modo não egoísta, é preciso se perguntar o que Francisco deixou "para mim", uma vez que tenho de me implicar no processo. Não importa que a herança, o legado de Francisco tenha ficado a seus filhos e filhas diretos de sua Ordem. Certamente não o fez assim. As herdeiras de Francisco são todas as pessoas que o têm não somente como santo de devoção, mas que imprimem no cotidiano de sua vida a impronta franciscana. De certo, acender-lhe uma vela não o fará mais feliz do que ser um agente da paz e da pacificação. De nada valerá dizer “irmão sol e irmã lua” e não tomar a sério o ser irmão e irmã no mundo, atento ao cuidado das criaturas.
Francisco nos deixou um testamento e uma herança. Talvez nunca tenhamos tido tanta necessidade de nos lembrar disso: somos herdeiros de um grande ideal; e, como nos recorda o Apóstolo de Tarso “carregamos este tesouro em jarro de barro” (2Cor 4,7).
Francisco, o mundo tem saudade de ti, mas você não está fisicamente entre nós. Sua mensagem só não será apagada, se nós, hoje, tomarmos a sério o seu testamento e a sua herança.
Fonte: https://freioton.blogspot.com/2021/10/francisco-de-assis-um-testamento-uma.html?m=1
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