Capítulo X - Parte 1
A maneira de escolher os lugares nas cidades e neles construir, segundo a intenção de São Francisco.
1 Certa vez, quando se estava em Sena por causa da doença dos olhos, o senhor Boaventura, que dera aos frades o terreno onde foi construído o lugar, perguntou-lhe: “O que achas deste local, pai?” 2 São Francisco disse-lhe.: “Queres que eu te diga como devem ser construídas as casas dos frades?” Respondeu-lhe: “Quero, pai”. 3 E o bem-aventurado Francisco disse: “Quando os frades chegam a uma cidade onde não têm casa e ali encontram alguém que queira dar-lhes a terra necessária para poderem edificar um lugar, ter uma horta e todo o necessário, 4 primeiramente devem verificar quanta terra lhes é suficiente, levando sempre em consideração a santa pobreza e o bom exemplo, que em tudo devemos dar”.5 Dizia isso porque, de forma alguma, queria que os frades se excedessem à maneira dos pobres nas casas, igrejas, hortas ou outras coisas que usassem, 6 nem que possuíssem lugares por direito de propriedade, mas sempre morassem neles como peregrinos e forasteiros (cf. 1Pd 2,11). 7 Por isso, queria que não colocassem frades em grande quantidade nos lugares, porque lhe parecia difícil observar a pobreza em uma grande multidão. 8 E, essa foi sua intenção desde o início de sua conversão até o fim: que a pobreza fosse rigorosamente observada em tudo.
9 “Portanto, depois de verificarem a terra necessária aos frades para o lugar, deveriam ir ao bispo da cidade e dizer-lhe: Senhor, por amor de Deus e para a salvação de sua alma, tal pessoa quer nos doar tanta terra para que possamos construir ali um lugar. 10 Por isso, recorremos primeiramente a vós, que sois pai e senhor das almas de todo o rebanho que vos foi confiado, das nossas e de todos os frades que vão morar neste lugar. Por isso, queremos aí edificar, com a bênção de Deus e a vossa” .
11 Dizia isso porque o bem das almas que os frades querem realizar, melhor o obtêm vivendo em paz com os clérigos, granjeando sua amizade e a do povo, do que escandalizando-os, mesmo conquistando o povo. 12 E dizia: “O Senhor chamou-nos para ajudar a sua fé e dos prelados e clérigos da santa Igreja. 13 Por isso, somos sempre obrigados a amá-los, honrá-los e venerá-los quanto pudermos. Pois, se chamam frades menores porque, tanto pelo nome quanto pelo exemplo e pelas obras, devem ser mais humildes do que as outras pessoas deste mundo. 14 E porque, desde o início de minha conversão, o Senhor pôs sua palavra na boca (cf. Ex 4,15; Is 51,16) do bispo de Assis, para que ele sabiamente me aconselhasse e confirmasse no serviço de Cristo. 15 Por isso e por muitas outras qualidades que vejo nos prelados, quero amar, venerar e considerar como meus senhores não só os bispos, mas também os mais pobres sacerdotes.
Reflexão
Como um texto escrito em 1318, o Espelho da Perfeição, assim como os outros textos franciscanos, deve ser lido de forma contextualizada. As discussões internas da Ordem ficam evidentes no início da obra. Deve-se ou não ter moradias fixas? Como devem ser estas moradias se as tivermos? Qual deve ser nossa postura ao querermos nos fixar em uma cidade? São perguntas essenciais em um momento em que a questão da retomada radical da pobreza está em pauta.
E para nós seculares, como devem ressoar estas dúvidas e as respostas que o autor coloca na boca de Francisco? Primeiro, o local deve mostrar que quem mora ali é pobre e simples. Às vezes temos a vontade de comprar um grande sítio, do qual não temos necessidade. Terra que não vai ser usada para nada. Para alimentar ninguém. Será que isso é correto? O fundador deixa claro que não.
Segundo Frei Almir Guimarães:
"A pobreza franciscana é um lugar social de solidariedade. Francisco pedirá a seus irmãos não somente que visitem os pobres, mas vivam entre eles, servi-los como pobres servem a pobres, submissos a todos. Os frades deveriam se assemelhar a eles por seu modo de vida e por sua mentalidade de desapropriação. Francisco não separa a pobreza material da pobreza em espírito tanto para os frades quanto para os leigos casados que queriam viver à maneira do Poverello".
Sendo assim, qual deveria ser a postura das fraternidades? Deveriam possuir grandes imóveis? Deveriam possuir muitos objetos e acumular muito dinheiro? Em nossas Constituições Gerais no Artigo 15 temos dicas sobre isso. No item 1 encontramos a seguinte afirmação: Empenhem-se os franciscanos seculares em viver o espírito das Bem-aventuranças e de modo especial o espírito de pobreza(...). Além disso, este trecho das Constituições tem outras afirmações muito esclarecedoras. Devemos viver a Pobreza Evangélica que nos fará mais dispostos a promover uma mais justa distribuição das riquezas. Através da vida em fraternidade e oração devemos fortalecer em nós a ideia de que precisamos reduzir nossas exigências pessoais, a fim de melhor partilhar nossos bens e dons. Outra ideia importante é a de que não podemos abraçar o consumismo e as ideologias que nos levam tratar como algo normal a exploração dos seres humanos. Será que ainda nos escandalizamos ao ver trabalhadores sendo obrigados a trabalhar aos Domingos, quando precisamos comprar alguma mercadoria? Ou achamos que é normal as pessoas se afastarem de suas famílias para nos servirem quando desejamos comprar ou usar algo?
A riqueza, a grande propriedade, o acúmulo de bens e outras formas de apropriação são contrários ao que uma fraternidade deve viver. No caso de herdarmos esta condição, devemos administrar tudo sem causar escândalo. Tudo deve ser simples. Os pobres devem ser nossos companheiros. Nossos espaços devem ser partilhados e cedidos para fomentar o crescimento humano.
Neste texto, Francisco também chama a atenção para o tamanho das fraternidades. Quanto maior o número de irmãos maior será a necessidade. As fraternidades deveriam ser pequenas. E se forem grandes não há problema algum em se dividirem em grupos, a partir de afinidades e interesses. Isto também fica claro no Artigo 34 das Constituições que nos informa que (...) podem ser constituídos sob a direção do único Conselho, seções ou grupos que reúnam os membros que têm em comum particulares exigências, afinidade de interesse ou identidade de opções operativas.
Por último, o Poverello deixa outra dica para as fraternidades franciscanas que tentam se estabelecer ou realizar suas tarefas sem maiores percalços e seguindo os passos do nosso carisma: Viver em comunhão com a Igreja. Onde estiverem devem cultivar um bom relacionamento com os bispos e o clero em geral. Primeiro que as contendas atrapalham a missão que devemos realizar. Depois, porque como menores devemos ser compreensivos e buscar uma relação profícua com aqueles que podem ser parceiros e irmãos na construção do Reino de Deus na Terra.
Fazendo isso estaremos seguindo as orientações de nossa Regra no item 6:
"Sepultados e ressuscitados com Cristo no Batismo, que os torna membros vivos da Igreja, e a ela mais fortemente ligados pela Profissão, tornem-se testemunhas e instrumentos da sua missão entre os homens, anunciando Cristo pela vida e pela palavra. Inspirados por São Francisco e com ele chamados a restaurar a Igreja, empenhem-se em viver em comunhão plena com o Papa, os Bispos e os Sacerdotes, promovendo um confiante e aberto diálogo de fecundidade e de riqueza apostólicas".
Para meditar:
Com temos vivido nosso relacionamento com a Igreja de um modo geral, bispos, clero e outros movimentos, pastorais e grupos? Será que neste convívio reina o ensinamento proposto por Francisco no Espelho da Perfeição?
Será que nossas fraternidades e nossas vidas refletem externamente o que Francisco orienta em relação aos bens que construímos?
Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)