OUTUBRO/2013
1. Difícil imaginar um franciscano secular que não estime a virtude da pobreza, quando esta for bem entendida. Um dos artigos da Regra assim reza: “Cristo, confiado no Pai, embora apreciasse atenta e amorosamente as realidades criadas, escolheu para si e para sua mãe uma vida humilde. Assim os franciscanos seculares procurem, no desapego, um justo relacionamento com os bens temporais, simplificando suas próprias exigências materiais. Estejam conscientes, de que, segundo o Evangelho, são administradores dos bens recebidos, em favor dos filhos de Deus” (n.11). Não é nosso propósito examinar exaustivamente as implicações deste artigo da Regra, mas buscar razões para que o pobre, segundo o Evangelho, venha a cantar. Quando se pode cantar a pobreza? O que Francisco nos diz em palavras e gestos a esse respeito?
2. A pobreza não é, primordialmente, questão de ter. Para Francisco tudo começa com o êxtase diante do Deus grande e belo que veio morar entre nós escolhendo o caminho da pobreza em seu nascimento, ao longo da vida e no despojamento final de sua morte. Deus é pobre. Não há outro caminho que nos leva à terra dos vivos, a não ser o desponsório com a Senhora Pobreza. A pobreza, em Francisco é questão de paixão por Deus que é pobre e que tem uma mãe muito pobrezinha. Trata-se de um enamoramento. Nada começa com cifrões. A partir da contemplação do Cristo pobre se pode cantar a pobreza. É o caminho escolhido pelo Rei que quis se tornar lavador dos pés dos homens.
3 Elói Leclerc no seu Francisco de Assis, o retorno ao Evangelho, fala da experiência do Poverello encontrando os mais miseráveis num daqueles abrigos junto afornos: “Cercado de todos esses pobres, Francisco descobria e saboreava a admirável Boa Nova. Descobria sua parte essencial e aquilo que ela tem de mais chocante e escandalosa: Deus quis esta com os seres perdidos, os fora-da-lei, os publicanos, os pecadores. Conviveu com eles e sentou-se à sua mesa. Por fim, morreu com eles a morte dos condenados. O Evangelho era esta realidade inaudita: a revelação de um amor divino que nada de humano pode justificar e que se oferece prioritariamente aos que não podem se prevalecer nem da estima do mundo, nem de posições que ocupam na sociedade, nem de sua riqueza, nem de seu sucesso social, nem mesmo de seus méritos e de suas virtudes, mas que esperam tudo unicamente da graça de Deus” (p. 69-70). Ora, quantas razões para que um pobre prorrompa em cânticos!
4. Para Francisco a pobreza interior leva à gratidão diante dos dons do Senhor. Tantos e tão diferenciados: a vida, o alimento de todos os dias, as pessoas que nos ajudam a viver. O Poverello reconhece sua dependência de Deus e dos outros. Ele vivera em constantes hinos de agradecimento. O Senhor lhe dera irmãos, fé nos sacerdotes, na eucaristia. Tudo é dom. Nada fazemos nós mesmos. O franciscano é um ser de ação de graças. Por isso será preciso restituir os bens recebidos: anunciar pela vida a bondade de Deus, anunciar a boa nova, cantar à vida, o sol, as estrelas, a própria morte. Tudo é dom. Somos ricos de todos os dons. O franciscano gosta de cantar porque se reconhece um agraciado.
5. Pobre é aquele que, aos poucos, foi se desvencilhando do sentimento de posse. Posse de si mesmo, posse de pessoas, posse de coisas, posse de cargos, posse de privilégios, posse de protagonismos. Vem aos nossos ouvidos esse dito de tanta sabedoria: viver na abundância das coisas necessárias. Pode ser que por vezes vivamos na abundância, mas é preciso viver também na penúria e na carência. Viver pobremente é viver na simplicidade das vestes, da casa, do estilo de vida, do carreirismo que nos faz esquecer-se dos outros. Os que assim agem, fazem lugar para Deus. Nunca querem ocupar o espaço do criador e vivem numa alegre dependência. Tudo é dom. Até a morte é dom, é irmã. Francisco e os franciscanos cantam a pobreza porque estão se desvencilhando de seu ego que é inimigo da própria alma. Livres de toda posse, cantam.
6. Episódio emblemático na vida de Francisco foi à deposição de suas vestes nas mãos de Pedro Bernardone. Os pintores souberam representar belamente esta cena. Zefirelli, no seu filme sobre Francisco, o representa nu indo ao encontro do sol, de braços abertos. Um pobre que canta, sem nada, leve, completamente leve. A partir daquele momento ele podia dizer com toda verdade: “Pai nosso que estais no céu”. Arriscou tudo. Só queria e só podia contar com esse Pai que veste os lírios, alimenta os pássaros e cuidará dele, Francisco, e dos seus. Os ricos não sabem cantar com o coração: estão preocupados demais com o amanha, a concorrência, a desvalorização da moeda… essas coisas todas que tiram a paz.
7. O pobre canta porque aprendeu a lição da gratuidade: “A gratidão leva Francisco a cantar os louvores de Deus. Seu júbilo encontra sempre novas tonalidades quando contempla a criação, reflexo do esplendor divino. Quanto mais sua vida se torna cântico de louvor, menos é tentado de se deixar levar pela busca de si. Não abusa da criação, nem quer dela se apropriar. Discípulo da santa pobreza, Francisco convida seus irmãos a louvar a Deus em suas criaturas. Não se trata de um piedoso costume ou de emotividade exaltada, mas de uma bem firme decisão de renunciar a todos os bens para dar a Deus o que lhe pertence. A vida franciscana não tem outro sentido senão louvar a Deus por meio de uma pobreza absoluta. Esta jubilação prefigura o cântico que toda a criação haverá de fazer ressoar para a glória de Deus quando a redenção estiver concluída e Deus será tudo em todos, porque todos o reconhecerão como Senhor e Paí único e o exaltarão pelos séculos dos séculos” (Do livro Pourleroyaume,Esser e Grau, p.30-31).