OUTUBRO/2013
ORDEM TERCEIRA OU TERCEIRA ORDEM
Como surgiu?
Paul Sabatier, autor francês protestante, escreveu uma Vida de São Francisco que foi publicada em 1894. Seus estudos tiveram influências marcantes na historia do franciscanismo. Queremos hoje, nesta Janela aberta, entrar em contacto com sua descrição do surgimento da Ordem Terceira, hoje Ordem Franciscana Secular. Os franciscanos seculares poderão haurir desta página inspiração para sua vida. Quando Sabatier fala dos Irmãos e Irmãs da Penitência ou Frades da penitência está se referindo, neste capítulo, aos terceiros leigos.
É no ano de 1221 que, comumente, se marca a fundação da Ordem Terceira ou Terceira Ordem, de sólito chamada de Fraternidade da Penitência nos documentos mais antigos (…). Francisco e seus companheiros quiseram ser os apóstolos de seu tempo, porém, como os apóstolos de Jesus, não pretendiam que todos os homens entrassem para a sua associação, forçosamente um tanto restrita e que, segundo a palavra evangélica, devia ser o fermento do resto da humanidade. Em consequência, sua vida era uma vida apostólica seguida ao pé da letra, mas o ideal que pregavam era a vida evangélica que Jesus havia anunciado.
Como Jesus, São Francisco não condenou a família, ou a propriedade, simplesmente viu nelas elos dos quais o apóstolo, e apenas o apóstolo, deve estar liberto. Se, de imediato, espíritos malévolos queiram interpretar seu pensamento ao fazer da união dos sexos um mal e de tudo constitui a atividade física do ser humano, uma falta; se os espíritos se serviram de seu nome para fugir de todos os deveres; se esposos se impuseram o ridículo martírio da virgindade no leito conjugal, verdadeiramente não se pode torná-lo responsável por tudo isso. Esses traços de ascetismo contra a natureza provêm da influência das idéias dualistas dos cátaros e não do poeta inspirado que cantou a natureza e sua fecundidade, que fazia ninhos para as pombas e as convidava a se multiplicarem sob o olhar de Deus e que impunha a seus frades o trabalho manual como um dever sagrado.
Os fundamentos da corporação dos Irmãos e das Irmãs da Penitência foram muito simples. Francisco não trazia para o mundo uma nova doutrina. A novidade de sua mensagem encontrava-se inteiramente em seu amor, em seu apelo direto à vida evangélica e a um ideal de vigor moral, de trabalho e de amor. Naturalmente, e bem depressa apareceram homens que caíram em práticas e devoções, imitaram externamente a vida dos claustros, para os quais, por uma ou outra razão não podiam retirar-se. Por isso, seria injusto representar os frades da penitência segundo este modelo.
Receberam eles uma Regra de São Francisco? Não se saberia dizê-lo. Aquela que foi dada em 1289 pelo papa Nicolau IV é simplesmente a refundição e a amálgama de todas as outras regras de confrarias leigas que existiam no final do século XIII. A atribuição desse documento a São Francisco significa apenas a adaptação de algumas pedras venerandas de uma construção antiga ao edifício novo. É um negócio de fachada ou de ornamentação, nada mais. Apesar da ausência de uma regra, vinda do próprio Francisco, pode-se ver claramente o que devia ser, em seu pensamento, essa associação. O Evangelho, com seus conselhos e seus exemplos, devia ser a verdadeira regra. A grande novidade visada pela Ordem foi a concórdia: essa fraternidade era uma união de paz que trazia para a Europa espantada uma nova trégua de Deus. A recusa absoluta de carregar armas foi um ideal bem quimérico e efêmero; os documentos lá estão para prová-lo, contudo foi um bem mantê-lo vivo por alguns anos.
O segundo dever essencial dos frades da penitência parece ter sido o de reduzir ao máximo suas necessidades e, mesmo mantendo sua fortuna, distribuir aos pobres, em intervalos regulares, a parte dos rendimentos que permanecia disponível, após ter-se contentado com o estrito necessário. Os outros deveres essenciais aos irmãos e irmãs da penitência eram: realizar com alegria os deveres de seu estado; dar às suas menores ações uma inspiração santa; ver nas coisas infinitamente pequenas, a aparência as mais banais, as parcelas de uma obra divina; permanecer livres de qualquer preocupação que avilta; usar das coisas como não sendo dono, como os servidores da parábola que deverão, em breve, dar conta dos talentos que lhes foram confiados; fechar seu coração ao ódio e abri-lo largamente aos pobres, aos doentes e a todos os abandonados.
Para posicioná-los nessa vida real da liberdade, de amor e de responsabilidade, Francisco fazia por vezes, apelo aos horrores do inferno e às alegrias do céu, mas o amor interessado era tão pequeno em sua natureza que essas considerações e outras do mesmo gênero ocupavam um lugar completamente secundário nas páginas que restaram dele, bem como em suas biografias. A via evangélica, para ele, é naturalà alma. Quem a conhecer a preferirá; não tem necessidade de ser provada como o ar e a luz. Basta levar os prisioneiros para lá para lhes impedir qualquer desejo de voltar para as prisões da avareza, do ódio e da futilidade.
Francisco e seus verdadeiros discípulos fazem então a penosa ascensão para as grandes alturas, apenas impulsionados pelas vozes interiores. A única ajuda externa que aceitam é a lembrança de Jesus, que os precede nas alturas e, misteriosamente, revive, sob seus olhares pelo sacramento da Eucaristia. A Carta aos Fiéis, onde essas ideias transbordam, é uma viva lembrança das alocuções de São Francisco aos terceiros. Para se representá-las concretamente pode-se recorrer à Legenda do Beato Luquésio, a quem a tradição fez o primeiro irmão da penitência. Originário de uma pequena vila da Toscana, ele a abandonou para fugir aos ódios políticos e se estabeleceu em Poggiobonsi, não longe de Siena, onde continuou a ser comerciante de grãos. Já rico, não lhe foi difícil comprar grãos para revendê-los em tempos de penúria e realizar enormes lucros. Rapidamente, no entanto, transformado pelas pregações de Francisco, conscientizou-se, distribuiu todo o supérfluo aos pobres e conservou apenas sua casa com um pequeno jardim e um burro.
Desde então, era visto entregar-se ao cultivo desse canto da terra e transformar sua casa numa espécie de hotelaria, onde os pobres e os doentes afluíam. Não os acolhia apenas, mais ia à sua procura até na Maresma infectada de malária e, muitas vezes voltava com um doente sobre os seus ombros, precedido de seu burro carregado com um fardo semelhante. Os recursos do jardim forçosamente eram bem limitados; quando não havia mais meios de fazer diferentemente, Luquésio tomava uma sacola e partia para mendigar de porta em porta. Entretanto, na maioria das vezes, era tempo perdido porque os pobres, a vê-lo trabalhador e tão bom, se sentiam mais contentes com alguns poucos legumes que ele comia com eles, do que com uma lauta refeição. Diante de seu benfeitor tão alegre em sua pobreza, eles esqueciam sua miséria e as murmurações habituais desses infelizes se transformavam em palavras de admiração e de reconhecimento.
A conversão não matara nele os laços de família: Bona Donna, sua mulher, tornara-se a melhor colaboradora e quando, em 1260, a viu definhar, pouco a pouco, sua dor foi muito forte para ser suportada:
“Tu sabes, querida companheira”, disse-lhe ele no momento em que ela acabava de receber os últimos sacramentos, “quanto nos amamos, enquanto juntos servíamos a Deus; por que não permanecemos unidos para juntos irmos às alegrias inefáveis? Espera-me! Também eu quero receber os sacramentos e ir-me contigo”.
Chamou o sacerdote para que lhe administrasse os sacramentos, em seguida, após segurar em suas mãos as de sua companheira que agonizava e tê-la reconfortado com belas palavras, quando viu que sua alma partira, traçou sobre ela o sinal da cruz, deitou-se e, invocando com amor a Jesus, Maria e São Francisco, adormeceu para a eternidade.
Paul Sabatier
Vida de São Francisco
Tradução de Frei Orlando Bernardi, OFM
Editora Universitária São Francisco – IFAN, p. 289-292