Março/Abril/2014
O SENHOR FAZ COISAS NOVAS
E, exatamente hoje e aqui, sob o império da mais valia, do desejo de lucro, do consumismo, quando de forma avassaladora a antropolatria na sua face mais cínica- a indiferença para com as criaturas, a exclusão dos pequenos, o aburguesamento, a voracidade insaciável de sempre mais ter – parece não reter seus passos, nem mesmo no espaço religioso e eclesial, exatamente aqui, interpelam-nos, Francisco e Clara a andarmos por outras trilhas. Sim, a vivermos alternativas comprovadamente viáveis ( ele e não poucos de seus irmãos as viveram), inconformes com a ordem estabelecida, já exausta e incapaz de responder às questões graves que, há mais de século, se arrastam à nossa frente, no chão da América Latina e do Caribe (FFB 2008).
1. A Ordem Franciscana Secular do Brasil realiza em Porto Alegre, de 14 a 16 de março de 2014, Capitulo Avaliativo de sua caminhada no Brasil. O tema vem assim formulado: “Ordem Franciscana Secular: conquistas, exigências e desafios do mundo atual”. O lema se inspirou numa frase do Apocalipse: “Coragem! Eis que faço nova todas as coisas” (Ap 21,5). O texto preparado para o evento aborda minuciosamente os aspectos do tema. Notas extraídas de uma publicação/ensaio de 2003 podem, talvez, nos ajudar a refletir sobre a questão da invenção do novo. (Jean-Claude Guillebaud, Le goût del’avenir, Ed. Seuil, Paris). Vejamos algumas observações deste autor.
2. Logo de início dois pensamentos nos levam a refletir:
· Preciso é mudar a vida; necessário mudar tudo; mudar tudo não quer dizer tudo destruir; é salvar tudo” (Maurice Bellet)
· Aqui estou, imbecil, ignorante. Homem novo diante de coisas desconhecidas” (Paul Claudel).
3. Gosto pelo amanhã, gosto pelo futuro, capacidade de olhar o horizonte e trabalhar para ser agente ativo de transformação. O gosto pelo futuro, pelo amanhã não é uma simples inclinação sentimental na direção de promessas do futuro, nem um abandono ao imprevisível. Não se resume num otimismo sonhador voltado à Providência. Ter gosto pelo futuro é, de alguma forma, querer controlá-lo. É recusar que o amanhã seja fruto das leis do acaso, abandonado a uma espécie de fatalismo, à dominação, às lógicas mecânicas de um processo sem sujeito.
4. Ser possuído por esta ideia de um amanhã a ser construído é renunciar à renúncia contemporânea. É renunciar a renunciar. As diferentes transformações de nossos tempos parecem que chegam para minar todo propósito de ação. Desastres ideológicos, políticos e certo marasmo mesmo no seio dos melhores: os ares dos tempos cheios de sinais, de murmúrios convidam-nos à sabedoria hedonista, à felicidade modesta do instante, ao fatalismo desencantado. Somos convidados a não mexer na história. Deixar que ela siga seu rumo. Os grandes projetos de ontem não deram grandes resultados. Somos atores do amanha na história. O mundo precisa continuar humano. Amar o futuro passa paradoxalmente por uma palavra de três letras que será necessário novamente aprender a articular: não. Não à inércia, não a cruzar os braços, mas sermos atores na transformação da história.
5. Será que temos consciência do alcance das transformações? Vemos serem perpetuados certos reflexos antigos, certezas impávidas. Temos medo de nos debruçar sobre o vazio. Repetimos o passado com medo do vazio. A vida não pode ser engessada pelo fascínio do passado. Guilherme de Saint Thierry: “São perfeitos esses que esquecem o que ficou para trás para se voltarem para aquilo que está à frente: são viajantes, estão a caminho”. Duas atitudes a serem evitadas: saudade e medo. Na palavra de um filósofo vivemos a inquietude aberta entre o crepúsculo de uma realização e a iminência de algo que pode surgir. Não seria a vigilância ativa uma postura adequada para os novos tempos?
6. Trata-se de inventar o novo. Parece importante renunciar às disputas e acolher qualquer facilidade. Maurice Bellet: “O grande assunto (affaire) é de operar na modernidade, depois da modernidade, em sua sufocação, sua queda, ou perturbação de fundo realizar o ato decisivo, a ruptura instauradora agora, de inventar, inventar”. “Anuncio um grande trabalho de parto, levando muito tempo, fora de nosso controle e de toda programação. O ponto de apoio não é mais aqui, nem atrás de nós, mas em frente, na profundidade do desconhecido”. O autor conclui a apresentação de sua obra dizendo: “Retenhamos a palavra profundidade. Ela se reveste do caráter de recomendação. No oceano das idéias é preciso pescar em águas profundas”.
7. Uma certa jovialidade (gaité= prazer de viver) : “Como todo mundo, por vezes, certas coisas atravessam a minha mente e nem ouso exprimi-las. Pensamentos que parecem simples, ingênuos, talvez estejam no interior dos pensamentos importantes. Penso que para além do princípio esperança, para além da vontade de retomar nossa história em mãos o que nos falta é uma certa gaité (alegria, contentamento de viver). Digo bem, uma certa alegria. A alegria que evoco nada tem a ver com as gargalhadas e menos ainda com zombaria generalizada e os sarcasmos maliciosos. Poderíamos empregar a palavra alegria (joie) sem seu cunho de grandiloquência. A despeito de todos os avanços tecnológicos, do sucesso, das riquezas nossas sociedades europeias (ocidentais) são invadidas por um sentimento obscuro que procede de uma prostração coletiva. Nosso rir é triste. Nossa seriedade inspira pena. Nossas prudências são lerdas. Nossas festas são sem amanhã. Nossa supervalorização da juventude não suscita mais de um sacudir de ombros. Trata-se de um mero artifício. É mascara cosmética de uma secura do coração e esterilidade do espirito. As sociedades que vão envelhecendo acolhem de bom grado os fantasmas, imagens, representações de imagens da juventude. As petulâncias publicitárias são sonhos enganadores e sintomas de melancolia. A “juventude” sem barriga e com um sorriso cruel que aparece em nossas telas e telinhas é invenção dos comerciantes. É velhice antecipada… A alegria verdadeira, aquela que perdemos, é a da aurora, da primavera, da explosão das flores, dos projetos. Ela se caracteriza pela impaciência do amanhã, pelos sonhos de fundação, por curiosidades e cóleras verdadeiras aquelas com as quais no comprometemos. O Deuteronômio dos judeus faz uma alusão a esta alegria quando evoca a terra prometida, com cidades que ainda não tinham sido construídas, suas casas ainda sem habitantes, seus poços ainda não cavados, suas vinhas e oliveiras ainda não plantadas (Dt 6,10-12). A alegria que nos falta é aquela que evocava Bernanos quando falava da “violenta esperança das manhãs”. Ela é precisamente o contrário de tudo que vivemos dia a dia. Nossas bulimias, nossos excessos, nosso frenesi afetado traem paradoxalmente nossa inapetência. Estamos mais dispostos a dançar no convés do Titanic do que buscar agarrar o leme do navio. Retomar o leme? É disto que se trata, no final das contas. O gosto pelo amanhã passa pela certeza alegre que as catástrofes não são programadas, que o pior que pode acontecer pode também não acontecer, que o futuro não está decidido , que todo remorso é um veneno a efeito lento. A alegria não pode ser deixada de lado cedendo aos desencantados e maldosos. Talvez eu pudesse dizer que a alegria de que falo é outra maneira de falar do espírito da infância. Não existe virtude mais alegre e mais importante.
8. A grande novidade do cristianismo é que o Cristo ressuscitado faz tudo novo. Não vivemos apenas de uma lembrança do Jesus histórico. Não estaria aqui também uma solução para nossa estagnação? Damos a impressão de estar sempre falando de um Cristo do passado. “A fé em Cristo ressuscitado não nasce hoje de forma espontânea, só porque ouvimos desde criança catequistas e pregadores. Para abrir-nos à fé na ressurreição de Jesus temos que fazer nosso próprio percurso. É decisivo não esquecer Jesus, amá-lo com paixão, busca-lo com todas as nossas forças, mas não no mundo dos mortos. Aquele que vive deve ser buscado onde há vida. Se quisermos encontrar com Cristo ressuscitado, cheio de vida e de força criadora devemos busca-lo não numa religião morta, reduzida ao cumprimento e à observância de leis e normas mas onde se vive segundo o Espírito de Jesus, acolhido com fé, com amor e com responsabilidade por seus seguidores. Temos que busca-lo não entre cristãos divididos e que se enfrentam em lutas estéreis, vazias de amor a Jesus e de paixão pelo evangelho, mas onde vamos construindo comunidades que colocam Cristo no seu centro, porque sabem que “onde estão reunidos dois ou três em seu nome, ali está Ele”. Não vamos encontrar aquele que vive numa fé estagnada e rotineira, gasta por todo tipo de lugares comuns e fórmulas vazias de experiência, mas buscando uma qualidade nova em nossa relação com Ele e em nossa identificação com seu projeto um Jesus apagado e inerte, que não apaixona nem seduz, que não toca os corações, nem transmite sua liberdade, é um Jesus “morto”. Não é o Cristo vivo, ressuscitado pelo Pai. Não é aquele que vive e faz viver” (Pagola, O Caminho aberto por Jesus, João, p. 238).
9. Refletindo sobre a formação das novas gerações, de modo particular pela ação dos professores, Christiane Conturie, fala dos caminhos de interioridade. Suas reflexões podem se aplicar a nós que estamos em estado de formação permanente: “A palavra, o silêncio, a escuta… ocupam lugar na formação dos jovens? Um dos grandes desafios espirituais do ensino em nossos dias é de trabalhar este aspecto. Não há vida espiritual sem interioridade. Sofremos de um déficit de interioridade, observa Christophe André: “Nosso espírito sente-se atraído pelo que faz barulho e pelo que é fácil. Nossa atenção pula de um tema para outro, de um assunto para outro, de uma preocupação para outra, de um distração para outra”. Para equilibrar a pessoa é urgente reabilitar a virtude da atenção. “Recolher-se é se reencontrar, se reabitar, retomar o contacto consigo mesmo precisamente porque muitos de nossos atos e de nosso entorno nos privam de nós mesmos.” Nosso tempo carece da virtude da atenção: “Nunca, em caso algum veio a se perder algum esforço verdadeiro na linha da atenção. Mesmo se, por vezes, alguns esforços de atenção parecem permanecer estéreis, dias virão em que uma luz proporcional aos esforços dispendidos inundará a alma. Cada esforço acrescenta um pouco de ouro a um tesouro que ninguém pode roubar”. (cf. Christiane Conturie, Enjeuxspirituels de l’enseignementaujourd’hui, in La VieSpirituelle, juillet 2013, p. 365-366).
10.E agora? O novo para a OFS?
· Tudo começa com a renovação de cada pessoa, de cada irmão, de cada discípulo de Cristo. Imersão no mundo de cada um, ver a realidade interior qual é. Recomeçar o seguimento numa Igreja nova, simples, verdadeira.
· Sempre de novo será fundamental dar à nossa consciência às razões pelas quais resolvermos seguir Jesus à maneira de Francisco. Que sentido teve a profissão na Ordem Franciscana Secular.
· Fugir, como o diabo da cruz, de todas as práticas meramente legais, sem alma, sem viço, sem mística. Nada de caminhos batidos. Ter a certeza de que estamos convivendo com o Ressuscitado.
· Rever o tema da fraternidade: fraternidade cristã lá onde vivemos, nossa fraternidade franciscana (criação de laços profundos e visíveis), fraternidade que se apoia numa fé vivida em comum.
· Visitar nosso interior, não deixar que os cantos de cada um sejam marcados por vazios. Dar hospitalidade ao Espírito e tender à maturação humana e cristã.
· Deixar-se impregnar do Evangelho vivo que se chama Jesus e evangelizar tanto quanto for possível, a começar pela evangelização através de nossa vida de menores, seres fraternos, pessoas de contemplação, fazendo-nos presentes na vida dos mais abandonados.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM