A palavra reconciliação é de grandíssima atualidade. As “diferenças” não são aceitas e as pessoas se encastelam no ódio, cavando cisternas e cortando pontes. Mundo caótico, mundo de ódios e de violência, mundo “desembestado” sem respeito nem cortesia. Os homens perderam a formula de serem humanos. Nada mais importante do que um empenho de reconciliação. Frei Antonin Allis, OFMCap, publicou na revista “Evangile Aujourd’hui”, n. 211, p. 29-35, um texto que levou o título de “François d’Assise, un homme reconcilie”. Nosso site da Imaculada se inspira fortemente nessa reflexão do frade capuchinho.
A reconciliação abrange um conjunto de relações do ser humano consigo mesmo, com os outros, com Deus e com o mundo criado. O contrário de “reconciliado” parece ser uma pessoa “explodida”. A não reconciliação é alguma coisa da ordem da violência ou da paixão. As pessoas se dopam, se drogam para “corrigir” as explosões.
Contrário a “reconciliado”, “reconciliação” é uma ser rasgado, dilacerado. Cada um de nós faz a experiência de dilaceramentos interiores entre amor e desprezo por si mesmo. Ser reconciliado é amar-se a si mesmo sem se considerar o centro do mundo, nem se desprezar. É ter com os outros um justo relacionamento nem de superioridade, nem de inferioridade; um ser reconciliado é ter para com a natureza uma relacionamento de respeito de louvor e não uma postura de dominação, nem de açambarcamento ou apropriação; um ser reconciliado é aquele que tem com o Senhor um verdadeiro relacionamento de amor e de confiança, não de medo, nem de rejeição.
A reconciliação é um caminho, um longo aminho. Supõe, em primeiro lugar, que reconheçamos nossos dilaceramentos e nossas lutas internas. É ver com clareza que precisamos aceder à unidade, empregar o melhor de nós mesmos, mudar nosso olhar, aceitar outros pontos de vista. Em termos cristãos a isso designamos de conversão. É um procedimento que nasce da fé e da confiança. Converter-se é aceitar não permanecer centrado sobre si mesmo, aceitar abrir-se a Deus e, ao mesmo tempo, aos outros e ao mundo criado. Converter-se é retomar o caminho primeiro desfeito pelo pecado. É ter novamente Deus por eixo. Temos a tendência de fabricar falsas imagens de nós mesmos, dos outros e de Deus. Converter-se é deixar-se purificar por Deus, reconhecer que ele está na origem de tudo, é o centro de tudo, que tudo vem dele, tudo a ele se refere. Converter-se é reconhecer que somos plenamente nós mesmos na medida em que correspondemos àquilo para que fomos criados. No termo da conversão nosso ser e nossos relacionamentos se transformam. Chegamos a um estado de harmonia. Harmonia conosco, com os outros e com o Senhor.
É preciso, no entanto, prestar atenção. Harmonia não é apenas um estado de equilíbrio propiciado por certas técnicas relaxantes. Não é também uma sensação de beatitude quase que física. Não ignorar os problemas e as dificuldades, mas encará-los de uma outra maneira. Estar em harmonia é tender à simplicidade, suprimir balangandãs e floreados, tudo o que é muito complicado e elaborado A harmonia é um acordo fundamental que faz com que sintamos e outros também sintam que aquilo que fazemos é o que precisa ser feito, o justo, nada demais nem de menos. Harmonia tem a ver com a maneira de falar: “As coisas estão sem seus devidos luares”. Tal não acontece da noite para o dia. O tempo do combate é longo, com seus altos e baixos. A harmonia não é dada de uma vez. Pede empenho, trabalho. Estaremos sempre a caminho. O importante é estar em tensão para… sem desânimo.
Francisco é um homem reconciliado porque foi fazendo ao longo do tempo de sua vida, enquanto é humanamente possível, esse trabalho de unificação. Soube aceder a uma grande simplicidade despojando-se de seu orgulho, narcisismo, vangloria e preocupações inúteis. A simplificação e a reconciliação interior de Francisco aparecem claramente sem suas Admoestações. Deve-se dizer que ele não se tornou uma pessoa reconciliada a ferro e fogo nem da noite para o dia, nem com condão mágico de uma fada. Conseguiu-o ao longo do tempo entregando-se a Deus, aos irmãos e aos acontecimentos. Foi somente no fim da vida com os estigmas, com o “Cântico do Sol” e com e sua morte nu sobre a terra nua que se tornou o homem pacificado. Sua morte nu sobre a terra nua não seria o símbolo mais forte de ser um homem reconciliado?
Francisco e o leproso – Testamento
Francisco, logo nas primeiras linhas de seu Testamento, faz menção ao encontro com os leprosos como momento essencial de sua conversão. “Até então, diz ele, a vista dos leprosos me enchia de amargura, mas o Senhor me conduziu até eles de sorte que o amargo se me tornou doce e o doce, amargo”. Francisco já tinha visto leprosos, mas até então eles nada mais haviam inspirado a não ser desgosto. O encontro com o Cristo de São Damião havia lhe aberto os olhos e o coração. Os leprosos se tornaram irmãos com os quais ele se comprazia em viver. Estamos diante de uma página de reconciliação.
Francisco e o perdão dos pecados – Legenda Maior 3,6
Por meio de uma visão, Francisco tem absoluta certeza de que foi perdoado de todos os seus pecados. É ao mesmo tempo uma verdadeira reconciliação com Deus e consigo mesmo. Esta reconciliação lhe proporciona paz interior e o liberta de todo sentimento de culpa pouco sadio. Ele continua tendo a consciência de que é pecador. Ao mesmo tempo, porém, confia no amor de Deus e em seu perdão. Esta certeza de ser alguém perdoado lhe dá forças e estímulo para ir adiante. Não é o pecado que precisa ser levado em consideração em primeiro plano, mas o amor de Deus, o amor do Pai que acolhe o filho pródigo, o amor do Filho que se entrega na cruz para nossa salvação.
Francisco e a natureza
Este aspecto da vida e da trajetória de Francisco vem sendo colocado em grande evidência nos últimos anos. Não é necessário dissertar sobre ele. Francisco tem laços afetivos, sinceros e reconciliados com a natureza. Tomás de Celano, na Vita Prima 80 e 81 faz um detalhado relato do Francisco reconciliado com a natureza.