Capítulo IX
Não queria ficar numa cela bonita ou que diziam ser sua.
1 Certo frade, muito espiritual e muito amigo do bem-aventurado Francisco, mandou construir, no eremitério em que permanecia, uma cela um pouco afastada, em que o bem-aventurado São Francisco pudesse ficar em oração, quando lá fosse. 2 Quando o bem-aventurado Francisco chegou àquele lugar, o frade conduziu-o à cela. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Esta cela é bonita demais!” 3 De fato, o piso era feito de madeira trabalhada com machado e enxó. “Portanto, se quiseres que eu permaneça ali, manda revesti-la por dentro e por fora com samambaias e ramos de árvores”. 4 pois, quanto mais pobrezinhas eram as casas e as celas, com tanto mais prazer morava nelas. Tendo o frade feito assim, o bem-aventurado Francisco permaneceu ali por alguns dias.
5 Certo dia, porém, tendo ele saído da cela, um frade foi vê-la e, depois, foi para onde o bem-aventurado Francisco estava. 6 Vendo-o, o bem-aventurado Francisco disse: “De onde vens, irmão?” — Disse ele: “Venho de tua cela”. E o bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Porque disseste que ela é minha, doravante outro vai estar lá, não eu”.
7 Nós que estivemos com ele (cf. 2Pd 1,18), muitas vezes o ouvimos dizer a palavra: As raposas têm tocas, e os pássaros do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar sua cabeça (Mt 8,20; Lc 9,58).
8 E dizia também: “Quando o Senhor esteve no deserto, onde orou e jejuou quarenta dias e quarenta noites (cf. Mt 4,2), não mandou construir ali cela ou casa, mas ficou sob o rochedo do monte”.
9 E assim, a seu exemplo, nunca quis ter casa ou cela que dissesse ser sua nem jamais mandou construir. 10 E até, se alguma vez acontecia que ele dissesse aos frades: “Ide e preparai aquela cela”, depois não queria permanecer nela por causa da palavra do santo Evangelho: Não vos preocupeis (Mt 6,24; Lc 12,22) etc. 11 Por isso, perto de sua morte, quis escrever no seu testamento que todas as celas e casas dos frades fossem somente de madeira e barro, para melhor conservar a pobreza e a humildade
Reflexão
Este texto aparentemente segue a linha dos anteriores, uma vez que assim como os outros trata da perfeição da pobreza. Ser pobre é o fundamento do ser menor. O autor do texto, que certamente fazia parte do grupo dos espirituais franciscanos, pesava a pena chamando a atenção sobre como deveria ser o modo de vida dos frades. Mas o que ele tem a dizer a nós irmãos franciscanos seculares? Já tratei disso anteriormente, mas neste texto ele usa alguns elementos muito fortes para organizar seu pensamento. Estes elementos podem nos dar dicas de como viver de forma autêntica nosso carisma.
Nada é nosso! Tudo é transitório! Usamos, não possuímos e por isso deve ser partilhado. O que é nosso é de todos. Isso me faz lembrar de uma viagem que fiz quando ainda era bem jovem. Fui com meus pais visitar um casal de amigos de meu pai, que morava numa localidade litorânea da Bahia, bem distante de Salvador. Chegando lá, fomos surpreendidos com a seguinte situação: o casal saiu de seu quarto para nos ceder o lugar. Isso me marcou profundamente. Não tinham sentimento de posse. Para mostrar o quanto éramos bem-vindos, nos cederam aquele que deveria ser o melhor lugar da casa para descansar. Que reverência! Que desapego!
Outra coisa é a comparação com a precariedade de Jesus. O Evangelho esclarece que não podemos prender nosso coração aos bens. A natureza, ou seja, toda a criação, exceto os homens e mulheres, abrigam-se e alimentam-se a partir da Providência Divina. O Filho do Homem também. Não se preocupava com o ter.
Um pai ou mãe franciscana secular não pode viver preocupado ou angustiado em cuidar do que os pertence. Não é o mais importante. Em uma sociedade de consumo, como a que vivemos hoje, acabamos por nos entregar aos desejos materiais. Achamos que os filhos, por exemplo, precisam de tudo. Quantos filhos prefeririam morar na casa de barro que Francisco idealizou para seus frades e ter seus pais a noite para bater um papo ou aos finais de semana para passear e brincarem juntos... O ter para estes não é o fundamental.
Quando prendemos nossa atenção nas posses ficamos cegos. Deixamos o essencial de lado. Os frades do século XIV, que participavam do movimento franciscano no momento em que o texto foi escrito, vivenciavam exatamente esta discussão. Ou vivo uma vida segura, cuidando da pregação, da cura d’almas e do apostolado, ou vivo a precariedade ou a simplicidade.
Quando estas discussões começam em nossas fraternidades, logo alguns taxam de radicais os irmãos que pensam em não se preocupar com bens e viver uma vida mais simples. Fraternidades onde os irmãos são servidos, têm muitos imóveis que servem apenas para fazer renda e manter o luxo em suas sedes e igrejas, que não revertem suas rendas para realizar o bem entre seus próprios irmãos e entre aqueles que estão excluídos da sociedade, precisam repensar. Diante deste texto, o que o Poverello faria? Como ele olharia estes bens e este sentimento de posse das fraternidades?
Nada deve ser nosso! Se me acostumei a possuir, tenho que me desapegar. Tenho que deixar outro dormir no meu lugar. Temos que tornar nossos bens disponíveis. Nossas rendas devem reverter-se em objeto de transformação e misericórdia. Nada é nosso!
Para meditar:
Você já conseguiu se desapegar?
Sua fraternidade já conseguiu se desapegar?
Temos feito esta discussão sobre como deve ser nosso olhar sobre o que temos?
Como sua fraternidade trata os bens que possui? Se não tiver bens, como ela partilha o pouco que tem?
Texto de Jefferson Eduardo dos Santos Machado – Coordenador de Formação da Fraternidade Nossa Senhora Aparecida – Nilópolis (RJ)