Três anos depois do lançamento de ‘Laudato Si’, a primeira Encíclica da história da Igreja Católica que trata da ecologia e do cuidado com a criação, como este documento está sendo assumido pela comunidade religiosa católica e como está sendo recebido pela sociedade, especialmente os governantes e ambientalistas?
A antropóloga Moema Miranda, ministra da Fraternidade Santo Antônio da Ordem Franciscana Secular, lembra que o alerta do Papa Francisco dado com sua encíclica, totalmente inspirada no pensamento franciscano, está mais forte ainda neste mundo em mutação. Segundo ela, o Papa deixou claro que o meio ambiente precisa ser protegido para proteger a própria vida. Não há outro caminho. Mesmo assim, há resistências por parte das elites mundiais em aceitar que o nosso Planeta está em perigo. De um lado, o Papa lembra que o “clima é um bem comum, que pertence a todos e destina-se a todos”, e de outro lado o presidente Donald Trump responde descartando as mudanças climáticas e seus significativos impactos para a vida.
O fechamento de fronteiras, as barreiras econômicas usadas como argumento de proteção, que só alimentam um estilo de vida consumista, não levam em conta a grande maioria da população que depende de um ambiente saudável para sua própria sobrevivência. Não há uma crise ambiental e outra social. Ou seja, se a terra sofre, os pobres são impactados, e vice-versa. “O Papa vincula intrinsecamente crise ambiental à crise social. A gente tem por tradição achar que as pessoas que se preocupam com os pobres, que cuidam dos pobres, que trabalham com a justiça social estão de um lado; e os ambientalistas, muitas vezes, de outro. O Papa diz: ‘Olha, a mesma crise que afeta a Terra de maneira tão dramática, afeta também os seres humanos na sua totalidade de uma forma tão dramática’”, destaca Moema, que deu esta entrevista ao site “Franciscanos” no dia da festa de Santo Antônio, no Convento Santo Antônio (RJ).
Mesmo nesse cenário de desesperança e imprevisibilidade, Moema é firme: não é hora de entregar os pontos. “A questão da imprevisibilidade é imensa. E qual é o nosso maior desafio hoje? É não desistir de disputar o futuro e lutar contra a lógica do ‘acabou a história, não tem mais jeito, vocês estão derrotados, o projeto de mundo vai ser esse mesmo; vai ser um mundo para poucos!’. Não, não acabou! Temos que disputar, por isso que a gente tem dito que esperança hoje não é só um substantivo; esperança hoje é um compromisso, uma escolha: eu escolho ‘esperançar’”, ensina.
“A Encíclica é um documento que todos nós, cristãos e cristãs, e particularmente nós, franciscanos, devemos assumir como nossa causa”, pede a antropóloga.
Moema Miranda fez mestrado e pós-graduação em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ministra da Fraternidade Santo Antônio (RJ) da Ordem Franciscana Secular, integra a secretaria da Rede “Igrejas e Mineração” da CNBB; faz parte da coordenação nacional do Sinfrajupe (Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia), assessora a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) e participa do grupo de estudos Ecotelogia do Instituto Teológico Franciscano (ITF). Trabalhou até agosto do ano passado no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
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Franciscanos – A Encíclica Laudato Si’ foi publicada há três anos em meio a grande interesse das comunidades religiosas, ambientais e científicas internacionais. Como você vê o alcance desse documento?
Moema – Esse documento marca a história da Igreja, não só porque é o primeiro em que um Papa fala sobre a questão ambiental, mas porque ele faz uma leitura de mundo muito inovadora. Quando diz “a terra clama contra o mal que lhe fizemos”, ele está dizendo: “Olha, o planeta em que nós vivemos é um sujeito, está falando, está dando para nós uma mensagem”. Isso é muito inovador porque a gente tende a achar que a Terra é inerte e que nós, seres humanos, é que a dominamos. Então, primeiro ele está reconhecendo esse sujeito. E isso vai de encontro, hoje, com o que as ciências da Terra têm dito: a Terra é um ser, um superorganismo vivo. Ela tem uma vida e uma história; ela age e reage, não só se move, mas é movida pela ação dos seres humanos. Ela se comove por isso. É uma terra toda vida, cheia de vida que gera vida. Então, isso é muito inovador e muito próximo do que a ciência contemporânea tem dito. Por outro lado, o Papa vincula intrinsecamente crise ambiental à crise social. A gente tem por tradição achar que as pessoas que se preocupam com os pobres, que cuidam dos pobres, que trabalham com a justiça social estão de um lado; e os ambientalistas, muitas vezes, de outro. O Papa diz: “Olha, a mesma crise que afeta a Terra de uma maneira tão dramática, afeta também os seres humanos na sua totalidade de uma forma tão dramática”.
Franciscanos – Trata-se de um documento para uma crise complexa.
Moema – Sim. Os cientistas têm dito que estamos entrando no antropoceno, como se fosse uma era geológica na qual os seres humanos já afetam toda a estrutura do Planeta. Então, estamos causando extinção em massa de várias espécies. O aquecimento global continua crescendo. O Papa escreve a Encíclica neste momento como um sinal de alerta. Que haja resistência a ela é normal porque se posiciona numa disputa muito grave. É bom lembrar que ela foi escrita um pouco antes da COP21 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2015), para dar uma força na assinatura do Acordo de Paris. Logo em seguida vem o Donald Trump eleito e diz: “Olha, não vou cumprir o acordo”. A gente sente da parte das elites mundiais uma resistência. Então, a Encíclica é um documento que todos nós, cristãos e cristãs, e particularmente nós, franciscanos, devemos assumir como nossa causa. Não só como um documento em si, mas com o cuidado de não romantizar e de não fazer uma leitura simplificadora do texto, porque ele não é nenhum pouco simples. É um documento muito sério, com uma leitura de mundo muito inovadora e com um terceiro aspecto que acho essencial: trata-se do documento de um Papa que escuta, que se coloca em diálogo com toda a herança cristã, reconhecendo a nossa contribuição, mas fazendo uma autocrítica a esta situação a que chegamos hoje.
Franciscanos – É o Papa do diálogo.
Moema - É um Papa que se coloca numa roda de diálogo com cientistas, ambientalistas, comunidades e com quem quiser conversar. Então, de fato, é um documento muito inovador, muito importante e com todas as limitações que, às vezes, a gente sente e que são resultados dessa disputa. Mas em relação à Laudato Si’ existe um trabalho de base sendo feito, como por exemplo, a convocação para o Sínodo da Amazônia pelo Papa. A Laudato Si’ está totalmente em sintonia com o Sínodo, que se faz a partir dos povos indígenas, a partir dos povos excluídos da Amazônia. A Igreja diz: quero escutar os povos da Amazônia porque reconheço que eles estão defendendo a Terra, defendendo a sua própria vida e têm uma mensagem a dar. Então, tudo isso está, de certa forma, no grande guarda-chuva da Laudato Si’, a nova posição da Igreja, que é uma posição eclesial, teológica, mas também é uma posição social e política no sentido maior da política, como diz o Papa Francisco na Laudato Si’: a política é o lugar principal da forma mais elevada de amor. Do amor civil, do amor pelo bem comum, do amor pelos outros. E, de fato, é uma Encíclica que só pode ser vista a partir da política, de um envolvimento nosso para fora da Igreja. A Encíclica Laudato Si’ é a síntese do coração da mensagem do Papa. Então, por isso a resistência a ela, por isso o nosso empenho para que ela seja apropriada, elaborada, compreendida, transformada em ação para a Igreja.
Franciscanos – O que falta para ela ser o ‘livro de bolso’ da humanidade?
Moema – Acredito que estamos vivendo não só uma crise ecológica, mas uma mutação ambiental. Uma crise é algo assim: “Olha, tive uma crise da meia idade, depois superei”. Ou então: “Tive uma crise no casamento”. Ou seja, você se separa, mas você se supera. Uma mutação é uma transformação que não vai ter volta para um final feliz. A gente vai ter que aprender a viver em um Planeta que está muito destruído pela ação dos humanos. E não sabemos, os cientistas não sabem, qual vai ser a resposta desse Planeta. Acostumamos com uma ciência assim: você pega uma panela de água e bota ela para ferver. Com cem graus centígrados, ela ferve. Pode ser na África, na China, no Japão, é a lei da causa e efeito. Com o aquecimento global, com as ciências que envolvem a Terra, isso passou a ser muito mais complexo, porque entram mais elementos. Então, o pensamento complexo e a compreensão complexa da realidade não permitem mais essa simplificação. A cada causa há muitos efeitos diferentes e imprevisíveis. Essa é a teoria do caos, de um grande pensador, Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química. Na relação com esse mundo, que é um mundo vivo, você tem mais imprevisibilidade. Então, estamos vivendo um período de mutação ecológica. E nós, de fato, precisamos tomar consciência da gravidade porque também há o efeito de esconder a gravidade dessa crise, justamente para que a gente fique na paralisia. Então, esse ‘livro de bolso’ já está sendo apropriado de uma forma muito bonita, para além da Igreja. Acho que nesse ponto de vista, o Papa Francisco foi muito feliz e está tendo esse retorno de cientistas, dos acadêmicos. Até há pouco tempo, Bernie Sanders, que foi candidato a presidente dos EUA, escreveu sobre o Papa. Então, o Papa está conseguindo falar para muitos outros campos além de nós, católicos. E isso tornou a nossa tarefa mais complexa também. A Laudato Si’ é para nós, de fato, um guia importantíssimo.
Franciscanos – Como entender esse mundo que tem um Papa Francisco e um Donald Trump?
Moema – Quando acabou a 2ª Guerra mundial, em 1945, os países organizaram as Nações Unidas, começou-se a guerra fria, com aquela disputa toda, e houve um período de crescimento com a corrida armamentista. Mas, ao mesmo tempo em que dois pólos no mundo dominavam (EUA e União Soviética), tivemos brechas para uma consciência ecológica mais elaborada com o movimento ecológico que nasce nos anos 60 e, na Rio92, surge uma consciência dos limites do Planeta.
No início dos anos 90, dois acontecimentos – a queda do muro de Berlim em 89 e o advento do neoliberalismo – marcaram o começo de uma nova era mundial. Com a dissolução do pólo da União Soviética, a gente tem o avanço dessa lógica do mercado. O Papa Francisco, num diálogo com os movimentos sociais, disse que estamos vivendo um regime de terror porque a ação do mercado solto, como principal promotor da organização do mundo, vai levar necessariamente à destruição. Não é uma questão de condenação do mercado, mas que lugar ele ocupa? Hoje estamos vivendo esse momento em que as grandes empresas são poucas, mas poderosíssimas. Os sub-ricos são mais ricos hoje do que em qualquer outra época do mundo. Há uma hiperconcentração da renda e uma quantidade imensa de pessoas pobres como nunca se viu. As grandes empresas, como elas têm muitos recursos no mercado financeiro, investem na Bolsa. Querem ganhar, ganhar e ganhar… Agora, ao investir nas Bolsas, eles também se desterritorializam. Eles dizem: não vou pagar imposto aqui, vou para aquele paraíso fiscal onde posso pagar menos impostos. Então, há uma desoneração fiscal. Nas décadas de 40 e 50, as empresas tinham fábricas fixas nos locais. Tinham que pagar impostos ali, não tinha jeito! Hoje, não se sabe para onde vai o imposto. Tome como exemplo a viagem da banana. Plantada aqui, ela é exportada, vamos supor, a um real para a Europa, que a comercializa a cinco reais. Onde é que vai esse dinheiro no meio do caminho. Porque a sede da empresa que produz não é a mesma que importa, mas a do paraíso fiscal. E os impostos são as condições de construção do espaço do bem comum: saúde pública, educação pública de qualidade. O pagamento de impostos é a única forma de você compartilhar.
Então, esse mundo do Papa Francisco e do presidente Donald Trump é um mundo em mutação e, mais ainda, é um mundo imprevisível no futuro. A questão da imprevisibilidade é imensa. E qual é o nosso maior desafio hoje? É não desistir de disputar o futuro hoje e lutar contra a lógica do “acabou a história, não tem mais jeito, vocês estão derrotados, o projeto de mundo vai ser esse mesmo; vai ser um mundo para poucos!”. Não, não acabou! Temos que disputar, por isso que a gente tem dito que esperança hoje não é só um substantivo; esperança hoje é um compromisso, uma escolha: eu escolho ‘esperançar’; eu escolho disputar o futuro a partir da minha organização no presente. E só posso fazer em comunidade, em comunhão, porque sozinho serei derrotado, claro! Num mundo em que essa sensação de estarmos sozinhos, sem a esfera do bem comum, as igrejas (ekklesias) precisam ser espaços de comunhão para ir à vida, para ir ao mundo, para nos ajudar incidir neste mundo em comunhão.
Franciscanos – Que é o que o Papa pede…
Moema - Isso mesmo. Quando ele pede “reze por mim”, não é só ficar de joelhos. Vão para o mundo como eu estou indo. O Papa hoje é uma referência na disputa de um projeto de futuro do mundo, como ele tem dito: nós podemos ter um futuro sereno. Para isso, é preciso haver uma transformação profunda dos nossos desejos, do que nós pedimos, do quanto nós acabamos contribuindo para que os ricos fiquem cada vez mais ricos toda vez que a gente entra na lógica da obsolescência programada. “Ah, meu computador quebrou, então jogo fora; preciso de um celular novo…”. Estou sempre insatisfeito, tenho que consumir, consumir, consumir. Como é que a gente constrói uma Laudato Si’ se a gente não faz uma conversão ecológica, uma conversão profunda. Como é que um estado de paz, que construo dentro de mim, permite-me relacionar com os bens materiais de outra forma, com uma sobriedade feliz. E o Papa diz: a sobriedade feliz é viver mais com menos. Não é uma proposta de infelicidade, para viver menos, mas uma proposta para você viver menos obcecado pelo luxo do consumo. E, nesse sentido, para nos comprometermos com a distribuição. Porque é fato que tem os que consomem exacerbadamente; é fato que tem os que estão se endividando para consumir. Mas cada vez mais cresce o número de excluídos do mercado de trabalho, os excluídos das possibilidades de gerar a sua própria renda, os que estão sendo criminalizados em vista da ação de violência no campo e da criminalização dos movimentos sociais. Nós temos que nos comprometer em reconstruir os laços de solidariedade, e isso que o Papa pede na Encíclica.
Franciscanos – Essa revolução digital pode ajudar o ser humano a ser mais perfeito e evoluído?
Moema – O Papa, na Encíclica Laudato Si’, fala, entre as várias coisas revolucionárias que ele faz, no parágrafo 79, que nesse mundo, um universo de muitos sistemas abertos, temos várias possibilidades de participação. O ser humano pode, com sua liberdade, encontrar um lugar de construção de diálogo, de avanço, de renovação. Mas ele também pode ser um fator de destruição. E ele diz que nós, antes de tudo, nessa aventura humana, podemos encontrar formas de nos salvar de nós mesmos. Então, é um parágrafo muito forte mas vale a pena a gente ler. É como se a gente estivesse de novo no Deuteronômio. ‘Eis que ponho diante de ti a vida e a morte. Escolhe a vida’. O Papa fala que esse é o lindo e instigante drama humano. Não tem um fim predeterminado. A escolha está sendo feita agora por cada um de nós. Existe mais possibilidades tecnológicas que abrem mais caminhos de comunhão, mas elas também podem ser usadas para caminhos de destruição. Segundo um autor interessante, nós entramos, desde o final da 2ª Guerra Mundial numa etapa da história da humanidade que, com a era atômica, um ser criado assumiu o poder de destruição de toda a criação como nenhum outro ser e nenhuma outra etapa. Disso, a gente não tem como voltar mais à inocência, não tem como desaprender. Então, temos que avançar para conseguir utilizar esse saber de uma forma com muita sabedoria. Por isso que o Papa diz na Laudato Si’: nesse momento tão decisivo da história, nenhum saber pode ficar de fora. Temos que juntar o saber da poesia, saber da arte, saber da ciência, saber da economia, e também saber da religião, com sua forma própria de conhecer o mundo, para, juntos, podermos fazer dessa oportunidade uma oportunidade de construção de um mundo melhor e de uma humanidade mais próxima do projeto do Reino, mais próxima do projeto de Deus. Mas não estamos condenados a fazer o bem como as abelhas a fazer o mel, então essa escolha está diante de nós e talvez no momento da humanidade em que estejamos tão frágeis, tão machucados, com a política tão desconstruída, com as igrejas sendo atacadas, com as guerras de religião voltando, com o fundamentalismo de direita, esse fundamentalismo que vai nos afastando, que vai nos deixando com medo. Nesse caminho é que a Encíclica nos oferece o chamado à humanidade para a alegria, para a solidariedade, para o compromisso de ‘esperançar’, numa atitude rebelde diante de um futuro que ainda está sendo disputado aqui e agora.
Franciscanos – Como analisa o Pontificado do Papa Francisco? A “Igreja em saída” que tanto pede está a caminho ou continua a passos lentos?
Moema – Olha, como a gente tem dito, é um caminho contraditório. Não é um caminho idealizado, romântico. Não é mais o tempo das previsões óbvias. O mundo hoje está muito conturbado, as instituições estão sendo colocadas em questão em todos os níveis. Das Nações Unidas, aos governos, à escola, tudo está sendo colocado em questão. Então, não tem um caminho óbvio. O Pontificado do Papa Francisco é um presente de Deus. É uma graça, é uma bênção. É uma chuva de bênçãos. Porque é a possibilidade de a gente ter dentro da Igreja um abrigo seguro para ir para fora. Agora, é tranquilo, calmo, harmônico, idealizado, romântico? Não. É contraditório, com disputa, com divergência, mas pelo menos tem esse ar para a gente respirar. Pelo menos tem essa expressão forte. Nessa mudança toda, há uma mudança de perspectiva. A gente se acostumou a pensar um caminho de progresso e desenvolvimento como se fosse uma coisa linear. Uma coisa do tipo do “Super-homem”, avante para cima! Não é assim. A vida é muito mais complexa; sempre foi! O mundo é muito mais complexo; sempre foi! O cotidiano é muito mais complexo; sempre foi! Olha a vida dos santos. Não são vidas lineares. São vidas cheias de angústias, de incertezas e só depois se tornam santos. Mas o que é o santo? O Papa Francisco, nesse último documento maravilhoso (“Gaudete et Exsultate”) escreve sobre a santidade e nos chama a sermos santos. Nesse mundo, os santos estão aqui, como Santo Antônio esteve. É como se fosse um canal de luz que se abre entre o céu e a terra e diz: é possível gente! “Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra”.
Então, temos que mudar também a nossa percepção e a expectativa: ‘ah, então vai ser tudo certinho, vai dar tudo certo’. Não! Vai ser nesta vida contraditória, nas escolhas feitas no aqui e agora. Por isso, a comunhão e a comunidade são tão importantes. É certo que as comunidades virtuais são importantes, mas elas não substituem as comunidades reais. Então, tem que haver uma combinação, mas com esse cuidado de não se deixar substituir ou supor que se pode substituir. Acho que o Pontificado do Papa Francisco é realmente esse sopro de esperança num tempo em que falta utopia.
Franciscanos – Graças a Deus que temos ele?
Moema – Graças a Deus, eu dou todos os dias de manhã, de tarde, de noite, graças a Deus por ter ele. Ele é um presente de Deus. Eu fico achando isso sabe, que Deus disse: ‘Olha, vou enviar o Paráclito e ele vai fazer maravilhas onde vocês não esperam’. Quem de nós poderia esperar um ‘papa do fim do mundo’ com essa mensagem? Ele surpreende e pessoas surpreendentes se apaixonam por ele, pessoas para além da Igreja, porque ele tem essa coisa que eu acho que é linda e muito diferente do que acontece mundo virtual e de tudo o que é fake: ele tem autenticidade. Ele não fica fingindo o que não é, como se dissesse: “Sou isso. Mas isso sou de todo coração, com a inteireza dos meus pés descalços caminhando nesse chão”. Tão franciscano não é?
Franciscanos – Como você chegou à OFS?
Moema – Sempre fui uma ativista social. Trabalhei organizando a Rio+20 (13 a 22 de junho de 2012), que deu uma grande movimentação no Rio de Janeiro (*), e conheci os franciscanos, porque o Sinfrajupe (Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia) estava participando. Gostaram do que falei em uma palestra e me convidaram para participar do Fórum Social Mundial naquele ano (janeiro de 2012), em preparação para a Rio+20. E eu me apaixonei totalmente.
Franciscanos – Você conhecia a mística franciscana?
Moema - Eu tinha essa visão popular. Cursei dois anos de Teologia na PUC e conhecia os exercícios espirituais de Santo Inácio. Então, quando conheci os franciscanos lá, abriu-se um caminho à minha frente. Me disseram: “Procure o Frei Vitorio no Convento Santo Antônio porque ele pode te orientar’. Ele foi superacolhedor. Ele falou sobre a Ordem Franciscana Secular, pois era o assistente da Fraternidade do Convento, e aí eu comecei a fazer esse caminho. Fiz todo o percurso de formação e professei.
Tudo em São Francisco fazia sentido com a minha trajetória: a questão ambiental, a fraternidade universal… Eu me apaixonei pela espiritualidade franciscana. Fiz muitos cursos de verão sobre franciscanismo e temos um grupo de estudos de Ecotelogia no Instituto Teológico Franciscano (ITF) de Petrópolis. Encontrei um Pai, uma luz, um caminho, uma conexão com os temas que já estava vivenciando. Tem uma coisa que é essencial na mística franciscana, que é essa idéia da cortesia, da delicadeza. Nós estamos vivendo num mundo tão sofrido, tão dolorido, cheio de feridas. São Francisco tem essa suavidade, diferente de uma coisa talvez mais afirmativa, mais guerreira, mais ‘da cruzada’. Esse santo que vai descalço conversar com o sultão; esse santo que escuta as flores; esse santo que pergunta para Clara: “Estou fazendo certo, estou fazendo certo?”; esse santo que se coloca junto com o leproso para encontrar seu próprio buraco mas também o preenchimento desse buraco; esse santo que pede a Deus que “ilumine as trevas do meu coração e me dê uma fé verdadeira”. Então, esse caminho da delicadeza, da cordialidade, da diplomacia, hoje, é muito essencial. Essa forma de ser de São Francisco me inspira muito.
Franciscanos – Como é ser ministra de uma Fraternidade da OFS?
Moema – Ser ministra talvez seja a coisa mais desafiante que tenho nessa trajetória franciscana, porque a fraternidade é o núcleo central. Agora, ela é diversa, múltipla, e muito próxima dos corações das pessoas. Então, está sendo um lugar de aprendizado impressionante. Tenho encontrado na Fraternidade um espaço de acolhimento, de conforto, um espaço maravilhoso para compartilhar. Realmente acho que tenho aprendido muito. Minhas irmãs têm uma generosidade imensa com minhas falhas.
Franciscanos – Há espaço para Francisco de Assis neste mundo?
Moema – São Francisco tinha espaço há 800 anos quando nasceu? Tinha espaço quando, em 1209, pediu permissão ao Papa para evangelizar, aprovando a primeira Regra de vida? Ele não tinha. Ele montou o espaço dele, que não estava pronto. “Ah está aqui sua cadeira, vem e senta!” Não foi assim. Ele saiu de um espaço sufocante em todos os sentidos. Ele rompeu os muros de Assis. Imagine o que é sair do conforto nesse lugar de conforto que nos conforta?! Ele teve a coragem de sair desse espaço. Ele foi para um mundo desconhecido porque o lado de fora das cidades fortificadas da Idade Média era um mundo desconhecido para as pessoas da categoria dele, um comerciante e jovem rico, numa cidade florescente como Assis, e onde ele descobriu a existência de um espaço novo. E aí ele se fez. Ali ele se fez santo! Na sua época, existiam os monastérios e os padres diocesanos, e não tinha um espaço para as Ordens Mendicantes, não tinha espaço para as Ordens de Pregadores. Então, como ele construiu isso? Ouvindo a mensagem, pedindo luz e tendo coragem de se expor ao erro, com delicadeza, com cortesia. Sem condenar, sem julgar, sem dizer ‘não quero que seja assim, assado’. Acho que essa é a inspiração para esse mundo de hoje, esse mundo em mutação. O nosso espaço vai ser criado pelo nosso convencimento de que temos uma mensagem, que é maior do que nós; que somos portadores de um chamado, que é maior do que nós. Não estamos aqui para realizar o nosso ego narcísico, mas queremos nos colocar a serviço de um projeto que é maior do que nós, em comunidade, em fraternidade e a partir daí, com muita determinação, construir espaços de encontro, harmonia e paz. Não a paz de cemitérios. A paz que se constrói, a paz que se reza, a paz que se chora, a paz que se ama. Essa paz que hoje a gente tem que construir; esse é o nosso chamado. Ser franciscano hoje é criar espaço para a Paz e para o Bem!
(*) A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, foi realizada de 13 a 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. A Rio+20 foi assim conhecida porque marcou os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) e contribuiu para definir a agenda do desenvolvimento sustentável para as próximas décadas.
Fonte: Franciscanos