Madre Maria Pacífica
Com jubilosa ação de graças, pela celebração do mês clariano, nos dispomos a desenvolver o presente tema, em atenção à solicitação de Frei Gustavo Medella.
Preparando o 90º aniversário da Fundação desta nossa Porciúncula da Gávea – Mosteiro de Nossa Senhora dos Anjos, no Rio de Janeiro, faz-se mister um mergulho nas Fontes de nossa espiritualidade clariana, para sempre mais nos afervorar e revigorar na vivência de tão magnífico carisma.
A Mãe Santa Clara tem particular cuidado pela vocação, quando escreve, no primeiro parágrafo, de seu Testamento: “Entre os benefícios que temos recebido e ainda diariamente recebemos da generosidade do Pai de toda misericórdia e, que devemos agradecer a Ele, o Glorioso, o maior é a nossa vocação. E, justamente porque ela é tão perfeita e tão grande, somos mais ainda obrigadas a dedicar-nos totalmente a ela. Por isso é que diz o Apóstolo: “Reconhece a tua vocação”.
Escreve, ainda, no 2º Capítulo de sua Regra: “Se alguém, por inspiração divina, vier ter conosco, querendo abraçar esta forma de vida…”(1). Havia recebido do seráfico Pai essa terminologia que lhe é tão cara, e a transcreve no Capítulo central da Regra: “Desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celestial, e desposastes o Espírito Santo, escolhendo uma vida conforme a perfeição do santo Evangelho…(2). Como lâmpada para o caminho, o seráfico Pai entregou a Mãe Santa Clara a Forma de Vida. Está inspirada naquele instante – o Evangelho da Anunciação – em que o fogo eterno do Espírito desceu sobre o feminino, tocou-o e eternizou-o, como lugar de manifestação numa virgem. Com esta luz na alma, a capacidade receptiva dilata-se como um espelho da ternura de Deus(3). Clara, por sua vez, narra seu biógrafo, Tomás de Celano, “como mestra de jovens a serem formadas e qual preceptora encarregada, no palácio do grande Rei, do cuidado das adolescentes, as educava com tal pedagogia e as fazia progredir com tão delicado amor, que não há palavras para exprimir toda a sua dedicação. Primeiramente, ensinava-lhes a afastar o ruído do coração para que pudessem perseverar firmes e unicamente na intimidade com Deus. Depois lhes ensinava a não se deixarem levar pelo amor aos parentes carnais e a esquecer a casa paterna se quisessem agradar a Cristo”(4). Assim, se temos inspiração, podemos realizar grandes obras de arte. A Madre Santa Clara decidiu fazer de sua vida a mais bela obra de arte, tendo como modelo o próprio filho do Altíssimo que Se fez nosso Caminho(5). Seus
Escritos, o Testamento, a Regra e as cartas estão repletos de referências ao tema.
O cuidado pela vocação está muito relacionado com o cuidado pelas irmãs, conforme a orientação apresentada pela seráfica Fundadora sobre o acolhimento à candidata: “Se alguém, por inspiração divina, vier ter conosco, querendo aceitar esta forma de vida…(6). Ao considerar que cada pessoa se apresenta para abraçar a forma de vida, sob inspiração divina, Clara recorda à comunidade a responsabilidade do bom exemplo, já que teremos de dar contas ao divino doador (cf TSC 22). Assim adverte: “O Senhor nos deu um exemplo, um modelo e um espelho, não apenas para os outros, mas também para as nossas Irmãs. Pois elas foram chamadas por Ele à mesma vida à qual Ele nos chamou, a fim de que também elas fossem um espelho e um modelo para os homens do mundo(7).
Uma de suas características mais notáveis no cuidado pelas irmãs é a forma de governo: as decisões não vêm do alto, mas são tomadas de comum acordo, em Capítulo, com a participação de todas. A abadessa “consulte todas as Irmãs a respeito de tudo o que é bom e útil para o convento; pois muitas vezes o Senhor revela ao menor o que é melhor(8). Isso denota como a Fundadora valoriza a opinião de todas, ao mesmo tempo que torna cada Irmã participante e consciente da construção da comunidade. Com sabedoria, profundamente conhecedora da psicologia feminina, sabe que é possível surgirem problemas e delega a cada uma a responsabilidade de ajudar a resolvê-los.
A santa Madre Clara multiplica palavras de ternura quando roga à Abadessa que a suceder particular atenção e cuidado para com suas irmãs. Chega a usar a expressão de que seja como a “serva para com sua senhora”(9). Aliás, a própria expressão “irmãs” é algo totalmente novo na terminologia monástica medieval. O próprio seráfico Pai tratava-as como “senhoras”. A expressão corrente de então era “Dona”. Clara usará 66 vezes em sua Regra a denominação “irmãs”, firmada na experiência pessoal do amor que nutria por suas irmãs de sangue, que depois a seguiram na vocação religiosa. Seguindo os ensinamentos do Divino Mestre, lavava os pés das irmãs externas, quando voltavam do trabalho fora. Nas noites frias, cobria-as com as próprias mãos, enquanto dormiam e, se alguma, como acontece, estivesse triste, ou perturbada, chamava-a à parte e a consolava(10). Lavava ela própria os vasos sanitários das enfermas, recomendando àquela que, depois dela, tivesse o cuidado das Irmãs particular solicitude para com as Irmãs enfermas. Seu Processo de Canonização é rico em testemunhos de todos os que experimentaram a ternura e o socorro da Santa Mãe em todas as suas tribulações.
Também os Irmãos da I Ordem puderam experimentar seu cuidado materno. Fato conhecido é o do Frei Estêvão que, atacado pela loucura, foi, pelo seráfico Pai, encaminhado à Santa. Após confortá-lo com palavras de doçura, Clara deixou-o repousar no local onde ela própria repousava. Ao despertar estava totalmente curado(11). Imagine-se, hoje, permitir a um Frade dormir na cela de uma Irmã, ou na enfermaria do Mosteiro! O fato demonstra a firmeza e a liberdade de espírito da seráfica Fundadora. Tanto seu biógrafo, quanto as testemunhas do processo confirmam, como que querendo salientar a grandeza de alma dessa jovem Abadessa, tão comprometida em aliviar o sofrimento de seus irmãos.
Tal cuidado reflete-se particularmente na fidelidade à santa pobreza, colocando todo empenho possível para ensinar suas Irmãs a afastar qualquer impedimento à total consagração ao sumo Bem amável!
“Ama totalmente aquele que totalmente se entregou por teu amor!(12)
Era comum então, que os Mosteiros obtivessem suas cartas de privilégio, isto é, certas isenções e favores em face a senhores feudais ou às imposições eclesiais. Clara também pensou em obter um privilégio para que, após sua morte, suas filhas não fossem obrigadas a abandonar o ideal abraçado. Solicitou um inteiramente singular “Privilégio da Altíssima Pobreza”.
Muitos são os testemunhos, tanto no Processo, quanto na Legenda, da firmeza da Santa perante Gregório IX. Desejando este absolvê-la do voto de altíssima pobreza, a Plantinha adquire gigantesca robustez para enfrentar o Pontífice e dele obter a confirmação do Privilégio já obtido do Cardeal Protetor.
Esse documento terá excepcional significado para a Ordem. Gregório IX parece tê-lo escrito como sendo ditado pela Santa, impressionado e motivado por suas veementes súplicas.
A partir desse encanto pela pobreza, à imitação do Pobre de Nazaré, a Mãe Santa Clara compreende o trabalho como uma graça. Retoma, em sua Regra, a expressão do Pai São Francisco: “As irmãs às quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem, a partir da Hora Tércia…”.
“Com o oferecimento de seu trabalho a Deus, os homens se associam à mesma obra redentora de Jesus Cristo que, trabalhando com suas próprias mãos em Nazaré, deu ao trabalho uma dignidade supereminente”(13). Tal ensinamento do Concílio Vaticano II, muitos séculos depois, vem complementar, na Vida Religiosa, o que foi intuição, vivência e ensinamento dos nossos seráficos Fundadores.
Ao aconselhar que o trabalho seja subordinado ao espírito de oração e santa devoção, a grande Mestra idealiza o que vem a ser o dia-a-dia de uma alma franciscana, no cuidado pela vida de oração e contemplação.
Assim, escreve: “Considero-te colaboradora do próprio Deus e sustentáculo dos membros frágeis e abatidos do seu inefável corpo que é a Igreja”(14).
A vida contemplativa tem o domínio da ação e do tempo. Outrossim, contemplar à maneira cristã não é um ‘exercício’ ou uma etapa de itinerário espiritual, mas uma consciência do Presença do Amado no templo da intimidade, da fraternidade e do universo. E quantas vezes resplandece assim na alma a ordem do universo, atraindo à contemplação, em meio à maior atividade produtiva! Sabemos, por experiência, em nosso dia a dia, da necessidade do silêncio contemplativo e orante para executarmos o trabalho em espírito de devoção, em atitude amorosa que unifica o ser! Daí se mergulha na mais pura contemplação, donde emergem as mais belas obras. Haja visto a delicadeza dos trabalhos manuais das Irmãs! Como já dizia o saudoso Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, referindo-se às Clarissas Pobres da Gávea: “É admirável, como as mesmas mãos que cavam com a enxada, semeiam e plantam, depois bordam, com perfeição, os mais belos traços, confeccionando alfaias para o culto divino com indizível delicadeza! E ainda: “Há as que esfregam o chão e os mesmos dedos escrevem belas páginas de espiritualidade!”
Clara, em sua Regra, indica o primado de Deus! Nas cartas, derrama a caridade do Espírito. Ela é a mestra de vida que convida a olhar o “espelho da eternidade”! Seu conselho “olha, considera, contempla” traduz o mesmo ensinamento da Mãe Santíssima: “Fazei tudo o que Ele vos disser (Jo 2,11).
“Olha” – é o exercício da fé que vê além!
“Considera” – é o esforço de aplicar os sentidos nas manifestações do Senhor – em tudo – mas sobretudo na meditação da Palavra de Deus, a qual fazemos voto de observar. Essa é a Regra!
“Contempla” – é saborear no interior o que os sentidos receberam e guardaram.
Clara recomendava às Irmãs Externas, quando as enviava para servir fora do Mosteiro, que louvassem a Deus ao verem as árvores bonitas, frondosas e belas; e, de maneira semelhante, quando vissem homens e as outras criaturas, sempre louvassem a Deus por todas e em todas as coisas(15).
Sendo o fruto da contemplação o louvor e a perfeita sintonia com a criação, Clara viveu esta plena harmonia. Narram as Testemunhas do Processo de canonização que, estando a Santa Madre muito enferma, de modo a não poder levantar-se, necessitou de uma toalha e, não havendo ninguém para levar-lhe, uma gatinha que havia no Mosteiro começou a puxar e arrastá-la, como podia. Então a senhora disse: “Bobinha, não sabe carregar; por que está arrastando no chão?” Então a gatinha, como se entendesse, pôs-se a enrolar a toalha para que não encostasse no chão. Segundo a Testemunha do Processo, tal fato foi-lhe narrado pela própria Santa!(16).
Seu derradeiro hino de louvor, veio no momento de sua passagem deste mundo, conforme relatam diversas Irmãs em seu Processo de Canonização. Na mais jubilosa contemplação do Rei da Glória, “a virgem, entrando em si, fala silenciosamente à sua alma: ‘Vai segura, porque tens um bom companheiro de viagem. Vai, porque Aquele que te criou, também te santificou e, cuidando de ti como uma mãe vela por seu filhinho, te amou com terno amor. Senhor, sede bendito porque me criastes!”(17).
Enfim, a vida de Clara de Assis, em perfeita sintonia com a criação, acolhe também a irmã morte com solene “Laudato si’!
Fonte: Franciscanos