Terça, 02 Agosto 2016 15:06

Carta dos Ministros Gerais Franciscanos para o VIII Centenário do Perdão de Assis

 

Em 2016, coincidem duas datas: o aniversário da data tradicional da concessão da indulgência da Porciúncula, desejada por Francisco para “mandar todos ao paraíso”, e o jubileu da misericórdia, desejado por um Papa que leva o nome de Francisco. Deixando aos historiadores o aprofundamento do debate sobre a indulgência da Porciúncula, queremos nós aproveitar a ocasião desta coincidência de datas, que nos convida a aprofundar o grande tema da misericórdia e do perdão em relação à nossa tradição espiritual franciscana.

 Misericórdia é palavra cara a São Francisco, que seguidamente a usa nos seus Escritos e a utiliza igualmente em duas direções, que remetem ao agir de Deus misericordioso e ao nosso agir com misericórdia para com os irmãos. Isto evoca a frase do evangelho que o Papa propôs como “lema” deste ano jubilar: “Sejam misericordiosos como é misericordioso vosso Pai” (Lc 6,36). A misericórdia, que podemos ter nas nossas relações com os outros, está estreitamente ligada à misericórdia que Deus tem para conosco: o amor de Deus é o reservatório inexaurível do qual podemos tirar a misericórdia a ser usada para com o próximo. Todos nós sabemos que conseguimos amar na medida em que descobrimos de sermos amados por Aquele que é a fonte de todo bem. Aquilo que geralmente dizemos do amor é da mesma forma verdadeiro para aquela forma especial de misericórdia que é o perdão. A parábola que Jesus narra para responder à pergunta de Pedro “quantas vezes devemos perdoar?” condena o comportamento do servo que não perdoa a pequena dívida ao seu companheiro, depois que o patrão lhe perdoara um grande débito.

Também neste caso, a razão para perdoar os outros é que nós mesmos fomos perdoados por Deus, como dizemos no Pai nosso, no qual rezamos “perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido”. Aquele “como”, mais que indicar igualdade, indica a motivação profunda pela qual perdoar aos outros: a partir da certeza de que Deus me perdoa, nasce a exigência de perdoar “como” Ele. É uma outra maneira de dizer que devemos ser misericordiosos “como” o Pai celeste. Se tudo isto for verdadeiro, descobrimos que nos é indicada uma estrada para nos tornarmos mais capazes de misericórdia: crescer na nossa consciência de sermos nós mesmos amados por Deus. Trata-se daquela relação entre o dom recebido de Deus e o dom oferecido aos irmãos, que é tão característico da experiência espiritual franciscana. Na medida em que nós, como Francisco, descobrimos que Deus “é o bem, todo bem, o sumo bem e que somente ele é bom”, torna-se forte em nós a exigência de corresponder a este bem que recebemos, doando o bem que somos capazes. E, para tornar-me mais consciente do amor que Deus tem por mim, devo parar algum momento para refletir, e nos darmos conta que, ainda uma vez mais, somos convidados a cultivar o espírito de oração e devoção, a unir contemplação e ação, se quisermos reencontrar a verdadeira fonte do nosso compromisso e do amor para com o próximo, para reencontrar a força e a energia para gastar toda a vida no serviço aos irmãos e para gerar em torno a nós paz e reconciliação, que são os frutos do amor contemplado.

Com o seu pedido ao Papa de uma indulgência extraordinária para a pequena igreja da Porciúncula, Francisco inventou uma nova maneira para celebrar a superabundância do perdão e da misericórdia de Deus para conosco. Podemos retomar e aprofundar a bela definição de indulgência que Papa Francisco nos oferece na Misericordiae vultus, definindo-a “indulgência do Pai que por meio da Esposa de Cristo alcança o pecador perdoado e o liberta de todo resíduo da conseqüência do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor, muito mais do que recair no pecado” (MV 22). Toda vez que recebemos esta extraordinária indulgência do Pai, por meio da Igreja, também nós experimentamos a abundância de misericórdia sobre nós, para nos tornarmos capazes de misericórdia e de reconciliação para com os outros, nas situações concretas da vida. Francisco nos mostra exemplos esplêndidos desta capacidade criativa de promover paz e reconciliação.

Pensemos simplesmente naquele episódio no fim de sua vida, no qual ele reconcilia o Prefeito e o Bispo de Assis, fazendo cantar o seu Cântico do Irmão Sol, com o acréscimo da estrofe do perdão. O antigo biógrafo, ao início desta história, nos diz que Francisco disse aos seus companheiros: «Grande vergonha é para nós, servos de Deus, que o Bispo e o Prefeito se odeiem de tal forma um ao outro, e ninguém tenha o cuidado de colocá-los em paz e concórdia» (Compilação de Assis 84). Francisco não pensa que se trate de uma questão que não lhe diga respeito e sente vergonha pelo fato de que ninguém faça alguma coisa para levá-los à paz. Pergunto-me: quanta vergonha sentimos nós, por que ninguém intervém para sanar os conflitos do nosso tempo? Quanto nos sentimos responsáveis, como Francisco, de levar paz e reconciliação, antes de tudo nas nossas próprias Fraternidades, quando existem divisões, assim como nas lutas políticas, religiosas, econômicas, sociais do nosso tempo? Um tal empenho, tão ativo e militante, nasce da profundidade da contemplação do amor de Deus por mim. Exatamente porque me sinto atingido pessoalmente pela indulgência do Pai, nasce em mim a força, a coragem, a esplendida “loucura” de intervir, como pode fazer um pobre enamorado por Deus: com o canto, não com um solene discurso e muito menos com a força. Francisco, com a sua inteligente simplicidade, não convoca o Bispo e o Prefeito para buscar resolver as suas contendas. Francisco sabe bem que esta não é a sua via: ele, em vez disso, os convoca para escutar um canto, porque somente elevando o olhar mais ao alto, em direção à beleza de Deus, sob as asas da música, os dois contendores poderão reencontrar as razões mais elevadas para a paz.

Nós franciscanos, no mundo de hoje, provavelmente não somos chamados muitas vezes para enfrentar e resolver os complexos problemas do mundo, oferecendo soluções técnicas ou entrando no mérito das difíceis questões, na maioria das vezes maiores do que nós: somos, porém, chamados a encontrar caminhos para animar os homens à reconciliação e à paz, tocando seus corações com o testemunho da minoridade, da simplicidade, da beleza e do canto, da verdade de relações fraternas e imediatas que remetem àquilo que é essencial, que fazem aos homens de hoje entender, como ao Prefeito e ao Bispo de Assis, que vale à pena viver na paz, relativizando os problemas concretos e escolhendo a via do perdão. Falando de indulgência e misericórdia, partimos de um olhar à indulgência do Pai e à sua misericórdia para conosco e chegamos a falar de intervenção na realidade conflitante do mundo de hoje. Poder-se-ia também fazer o percurso inverso: iniciar falando do perdão e reconciliação com os irmãos para chegar a falar da misericórdia de Deus, como faz Francisco no Testamento. Aquilo que importa é que não separemos jamais os dois elementos, porque Jesus no Evangelho ensina que o primeiro mandamento fala ao mesmo tempo do amor a Deus e ao próximo, que não podem ser separados. Este centenário nos ajude a experimentar uma salutar vergonha porque parece que ninguém quer tomar o cuidado de promover paz e concórdia na realidade conflitante na qual vivemos e nos faça crescer na criativa capacidade de encontrar maneiras novas para cantar um canto compreensível aos homens e às mulheres do nosso tempo. Seja nossa vida este canto que, na medida em que é louvor vivente àquele Deus de quem provém todo amor, torne-se provocação eficaz para construir paz e reconciliação.

 Roma, 23 de julho de 2016, festa de Santa Brígida, Patrona da Europa.

 Fr. Michael Anthony Perry, OFM, Ministro Geral

 Irmã Deborah Lockwood, OSF, Ministra Geral

 Fr. Mauro Jöhri, OFMCap, Ministro Geral

 Fr. Nicholas Polichnowski, TOR, Ministro Geral e Presidente da CFF

 Fr. Marco Tasca, OFMConv, Ministro Geral

 Tibor Kauser, OFS, Ministro Geral

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